Abordagem mais feminista em consultas poderia evitar mortes de mulheres por câncer
Em 2008, a professora Sandra Gonçalves, hoje com 53 anos, notou um nódulo pequeno na mama direita, do tamanho de um caroço de azeitona. Passou por três ginecologistas e nenhum deles a encaminhou para uma mamografia. "Um deles disse que era leite empedrado e, na época, minha filha caçula já tinha 10 anos. Outro disse que era coisa da minha cabeça e que eu estava procurando doença", conta.
Somente em 2013, quando foi buscar atendimento por conta de uma pressão alta, uma enfermeira deu a devida atenção e perguntou se os exames preventivos dela estavam em dia. "Fiz o papanicolau e ela perguntou se eu fazia o autoexame. Disse que fazia e que sentia há anos um nódulo. Essa enfermeira me examinou e logo me encaminhou para a mamografia, quando enfim tive meu diagnóstico, cinco anos depois", diz a professora que descobriu o câncer já em estágio avançado e hoje está em cuidados paliativos por conta de uma metástase que atingiu seus ossos e a medula. Casos como o da professora não são exceção.
Um estudo recém-publicado no The Lancet mostra que uma "abordagem feminista" poderia eliminar as desigualdades e salvar vidas de mulheres em todo o mundo. O estudo analisou mortes prematuras por câncer de pacientes com idades entre 30 e 69 anos e concluiu que 800 mil vidas poderiam ser salvas todos os anos se as mulheres tivessem acesso a um bom atendimento.
Segundo o relatório, a desigualdade e a discriminação de gênero são obstáculos para que o diagnóstico precoce seja feito. O câncer é uma das maiores causas de morte de mulheres e está entre as três principais causas de mortes prematuras em quase todos os países. No Brasil, segundo as informações da publicação Estimativa 2023 – Incidência de Câncer no Brasil, lançada pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA), o câncer de mama é o mais incidente (depois do de pele não melanoma) e são esperados 74 mil casos novos por ano até 2025.
"A gente precisa entender que o câncer é democrático, ele não escolhe sexo, cor, religião nem posição social. As médicas que não me examinaram precisavam de empatia, de se colocar no lugar do outro. E se fosse a mãe, a avó ou a irmã dela? Teriam recebido o mesmo atendimento?", questiona Sandra.
A presidente da ONG Oncoguia, a psico-oncologista Luciana Holtz, diz que é recorrente ouvir pacientes com câncer avançado que não foram ouvidos pelo médico da atenção básica ou de outra especialidade. "O médico deve sempre desconfiar, investigar e, se for o caso, encaminhar. O que não dá é para não investigar", diz. Ela comenta que as mulheres estão morrendo de uma doença que pode ser detectada no início.
"Se fizermos ainda um recorte de raça e cor, o problema é ainda maior. Falta equidade na saúde. As pessoas que dependem do Sistema Único de Saúde (SUS), as pretas, as periféricas, têm ainda mais dificuldade de ter seu diagnóstico. São essas pessoas que vão morrer mais", observa.
Ela ressalta que não basta fazer o exame, mas dar acesso a médico e exames perto de casa, pois nem todas têm informação, recursos e tempo para se deslocar para outras unidades de saúde.
FALTA INFORMAÇÃO E ACESSO PARA TODAS
Além de todas essas barreiras, a psico-oncologista repara que existe uma grande estigmatização da doença. "Muitas mulheres preferem não fazer os exames, pois acham que 'quem procura, acha'. Depois, encontram muita desinformação, pois, no caso da mamografia, a recomendação das entidades médicas é a partir dos 40 anos para todas, enquanto o Ministério da Saúde orienta fazer apenas entre 50 e 60 anos. A paciente fica perdida e confusa."
Segundo a Sociedade Brasileira de Mastologia, a justificativa para essa recomendação de fazer anualmente após os 40 anos é porque 25% das mulheres do país têm câncer de mama entre 40 e 50 anos. "Quando postergamos essa recomendação para os 50 anos estamos, sim, retardando diagnóstico na nossa população. A paciente do SUS que tem diagnóstico em estágio avançado tem menor sobrevida que a paciente de mesmo estágio no sistema privado. O acesso à droga é diferente no SUS comparando com a saúde suplementar [convênio]. Portanto, a chance que a mulher tem de curabilidade é ter acesso a mamografia", ressalta a mastologista e membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Mastologia, Rosemar Macedo Sousa Rahal.
A pesquisa Datafolha "O Que as Mulheres Brasileiras Sabem Sobre o Câncer de Mama e o que Podemos Absorver em Prol da Equidade na Saúde?", divulgada no Congresso Todos Juntos Contra o Câncer, realizado em setembro, em São Paulo, mostra que duas em cada três brasileiras só fazem exames clínicos de rotina para detecção do câncer de mama ou autoexame quando são estimuladas por médicos ou campanhas de conscientização. Ainda assim, os exames são mais comuns entre as mulheres das classes A e B, com idades entre 40 e 59 anos.
Pelo menos 6% das entrevistadas relataram ter dificuldade de acesso aos exames, como não conseguir marcar pelo SUS (3%), demora para conseguir (2%), preço elevado (1%) e não ter aparelho disponível na região onde mora (1%).
A mastologista diz que existe a necessidade urgente de investimentos em capacitação e treinamento de profissionais de saúde sobre sinais e sintomas do câncer, entre eles, o de mama, para oferecer estratégias para o rastreamento e diagnóstico precoce. "Principalmente para os profissionais da atenção básica de saúde, que representam a porta de entrada para o SUS. O agente comunitário de saúde, por exemplo, tem um papel fundamental para as estratégias de redução da mortalidade do câncer porque esse profissional vai até a casa da paciente, é mais próximo da comunidade e, portanto, tendo um maior poder de convencimento para que a mulher aceite realizar a mamografia. Muitas têm medo do exame."
RASTREAMENTO PRECOCE
O rastreamento de doenças como o câncer de mama deve começar antes dos 40 anos para quem tem histórico na família. Mesmo tendo a mãe e a irmã com câncer de mama, Sandra não recebeu o atendimento que precisava e, ao iniciar o tratamento, enfrentou outras barreiras.
"Eu falava para o oncologista que sentia muita dor com o efeito da quimio. Sentia que tinha vidro moído nos meus músculos e passava o dia toda deitada, sem ânimo para nada. Ele dizia que era assim mesmo e que não tinha o que fazer, que não ia passar", afirma a professora.
No entanto, a paciente pediu para trocar de oncologista e, ao ser atendida por uma mulher, pode voltar a viver melhor. "Voltei a usar meu salto alto, me arrumar e a ser feliz. Nas consultas, ela me olhava e perguntava: ‘como você está?’ E falava dos meus exames e ela sempre dizia que o exame ela sabia o resultado e que queria saber da Sandra, como a Sandra estava se sentindo. Isso fez toda a diferença, pois eu não era o diagnóstico, não era só um número", relata.
A professora diz que "diagnóstico não é destino" e que todos os dias busca não pensar na doença. "Ter câncer não garante que você vai morrer da doença. Todos vamos morrer um dia. Por isso, prefiro viver de pé, no meu salto alto. Sempre digo que vou morrer igual as árvores, de pé."
Matéria publicada na Folha de S. Paulo em 07/10/2023
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