[ARTIGO] Enterrando nossos mortos dentro de nós
Finados.
Acordei reflexiva. Quero prestar uma homenagem aos meus mortos e estou procurando uma forma que seja legítima para mim.
Não quero encontrá-los em nenhum lugar específico.
Não quero lugares nem altares. Pelo menos nada que não me pertença de fato.
Quero procurá-los dentro de mim.
Uma homenagem que eu possa reconhecer e que faça sentido.
Fico em silêncio e escuto meus próprios ruídos.
Ruídos que me dizem que a morte nos alcança a todos, direta ou indiretamente.
Afinal a morte é um evento do ciclo vital.
Nós nos afastamos de temas que nos angustiam. Tentando nos proteger da dor evitamos enfrentar a vida e seus desdobramentos.
Um corpo morto é profundamente incomodo, pois traz consigo a consciência da nossa própria finitude.
Consideramos no mínimo estranho, algumas pessoas se reunirem e falarem sobre o processo de morrer e a morte.
Morrer e morte são eventos distintos e separados.
A morte é universal, mas o processo de morrer é absolutamente pessoal. Morremos acompanhados pelos diversos aprendizados que adquirimos enquanto vivemos.
Quanto mais nos distanciamos das experiências da vida, sejam elas quais forem, adentramos num universo de possibilidades fantasiosas, que despertam nossos mais profundos e desconhecidos sentimentos.
Imaginamos de maneira onipotente uma morte que será remediável a qualquer preço, e criamos um arsenal não só tecnológico de última geração, mas também psicológico e emocional que nos garanta este poder.
Trabalhamos com a ilusão de uma morte controlável, deixando de percebê-la como parte de um processo natural, que envolve perdas integrantes do ciclo vida-morte-renascimento pertinente a expressão natural da experiência humana.
Perdas nos reportam a momentos de crise, que surgem da imponência da Vida que se revela de maneira implacável e tenta caminhar paralelamente à necessidade de continuarmos a desempenhar diversos papéis no nosso cotidiano enquanto vivemos.
Enfrentamos uma sucessão de acontecimentos no âmbito familiar em consequência da perda de um de seus membros, muitos deles advindos de uma rede oculta e dependência emocional.
Quando perdemos alguém próximo, um pedaço de nós morre também.
É importante que tenhamos presente o significado das nossas relações afetivas, para que possamos aproveitá-las no processo de viver e pranteá-las na morte.
A história nos conta que reis medievais choravam sua dor agarrados aos seus mortos. Aos poucos a morte foi delegada as carpideiras, que choravam os nossos mortos, e foi se tornando inconveniente socialmente até chegar à morte institucionalizada, cindida e isolada, longe dos nossos olhos.
O ditado diz: "O que os olhos não vêem o coração não sente”.
A pouca disponibilidade para o encontro e a ocultação da morte contribuem para a diminuição do drama, denunciando a inconveniência e o embaraço presentes na expressão de sentimentos fortes, intensos em público.
No hospital a morte é reclusa, a equipe de cuidados reveza a atuação na dissimulação da morte. Crianças pequenas não podem participar das visitas. A supressão do período de luto é acompanhada da dificuldade em expressar dor e sofrimento.
Engano. A alma sofre.
Talvez a proximidade da morte nos dê a liberdade necessária para se tratar dela.
A dificuldade em aceitar a morte, faz com que acreditemos que ela é apenas consequência de uma doença qualquer e que tratando da doença eliminamos a morte.
Achar sentido na morte nos aproxima da expressão do destino, faz com que participemos de uma experiência significativa.
Mortos insepultos continuam assombrando os vivos; enterrar os nossos é nosso direito e dever.
Então, me dou conta que estou aqui a falar sobre morte e isso não me impede de me sentir viva, participando de um mundo que me oferece a cada momento possibilidades interessantes.
Olho minha vida ao longo dos meus 50 anos e penso que já morri muitas vezes. E renasci outras tantas.
E já vi muitas mortes e renascimentos entre as pessoas que conheço e as pessoas que amo.
Então, a minha homenagem aos meus mortos dentro e fora de mim, é um poema de Rainer Maria Rilke:
Acordei reflexiva. Quero prestar uma homenagem aos meus mortos e estou procurando uma forma que seja legítima para mim.
Não quero encontrá-los em nenhum lugar específico.
Não quero lugares nem altares. Pelo menos nada que não me pertença de fato.
Quero procurá-los dentro de mim.
Uma homenagem que eu possa reconhecer e que faça sentido.
Fico em silêncio e escuto meus próprios ruídos.
Ruídos que me dizem que a morte nos alcança a todos, direta ou indiretamente.
Afinal a morte é um evento do ciclo vital.
Nós nos afastamos de temas que nos angustiam. Tentando nos proteger da dor evitamos enfrentar a vida e seus desdobramentos.
Um corpo morto é profundamente incomodo, pois traz consigo a consciência da nossa própria finitude.
Consideramos no mínimo estranho, algumas pessoas se reunirem e falarem sobre o processo de morrer e a morte.
Morrer e morte são eventos distintos e separados.
A morte é universal, mas o processo de morrer é absolutamente pessoal. Morremos acompanhados pelos diversos aprendizados que adquirimos enquanto vivemos.
Quanto mais nos distanciamos das experiências da vida, sejam elas quais forem, adentramos num universo de possibilidades fantasiosas, que despertam nossos mais profundos e desconhecidos sentimentos.
Imaginamos de maneira onipotente uma morte que será remediável a qualquer preço, e criamos um arsenal não só tecnológico de última geração, mas também psicológico e emocional que nos garanta este poder.
Trabalhamos com a ilusão de uma morte controlável, deixando de percebê-la como parte de um processo natural, que envolve perdas integrantes do ciclo vida-morte-renascimento pertinente a expressão natural da experiência humana.
Perdas nos reportam a momentos de crise, que surgem da imponência da Vida que se revela de maneira implacável e tenta caminhar paralelamente à necessidade de continuarmos a desempenhar diversos papéis no nosso cotidiano enquanto vivemos.
Enfrentamos uma sucessão de acontecimentos no âmbito familiar em consequência da perda de um de seus membros, muitos deles advindos de uma rede oculta e dependência emocional.
Quando perdemos alguém próximo, um pedaço de nós morre também.
É importante que tenhamos presente o significado das nossas relações afetivas, para que possamos aproveitá-las no processo de viver e pranteá-las na morte.
A história nos conta que reis medievais choravam sua dor agarrados aos seus mortos. Aos poucos a morte foi delegada as carpideiras, que choravam os nossos mortos, e foi se tornando inconveniente socialmente até chegar à morte institucionalizada, cindida e isolada, longe dos nossos olhos.
O ditado diz: "O que os olhos não vêem o coração não sente”.
A pouca disponibilidade para o encontro e a ocultação da morte contribuem para a diminuição do drama, denunciando a inconveniência e o embaraço presentes na expressão de sentimentos fortes, intensos em público.
No hospital a morte é reclusa, a equipe de cuidados reveza a atuação na dissimulação da morte. Crianças pequenas não podem participar das visitas. A supressão do período de luto é acompanhada da dificuldade em expressar dor e sofrimento.
Engano. A alma sofre.
Talvez a proximidade da morte nos dê a liberdade necessária para se tratar dela.
A dificuldade em aceitar a morte, faz com que acreditemos que ela é apenas consequência de uma doença qualquer e que tratando da doença eliminamos a morte.
Achar sentido na morte nos aproxima da expressão do destino, faz com que participemos de uma experiência significativa.
Mortos insepultos continuam assombrando os vivos; enterrar os nossos é nosso direito e dever.
Então, me dou conta que estou aqui a falar sobre morte e isso não me impede de me sentir viva, participando de um mundo que me oferece a cada momento possibilidades interessantes.
Olho minha vida ao longo dos meus 50 anos e penso que já morri muitas vezes. E renasci outras tantas.
E já vi muitas mortes e renascimentos entre as pessoas que conheço e as pessoas que amo.
Então, a minha homenagem aos meus mortos dentro e fora de mim, é um poema de Rainer Maria Rilke:
"Vivo minha vida em crescentes órbitas
Que se deslocam sobre as coisas do mundo.
Talvez eu nunca alcance a última,
Mas esta será a minha tentativa.
Circulo ao redor de Deus, ao redor da antiga torre,
E venho circulando há mil anos,
E ainda não sei se sou um falcão, ou uma tempestade, ou uma grande canção.”
Regina Liberato
Psico-Oncologista
Coordenadora de Projetos Multiprofissionais do Instituto Oncoguia
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