Diagnóstico de câncer pode levar ao fim de relacionamentos, principalmente entre mulheres, aponta estudo
Com a estimativa do Instituto Nacional de Câncer (Inca) de que sejam registrados 704 mil casos de câncer por ano no Brasil até 2025, é importante estar atento aos inúmeros desafios enfrentados por essas pessoas. Além das questões mais rotineiras, como a realização de exames e a preocupação com o tratamento, muitos pacientes também têm de lidar com o fim de relacionamentos no período em que mais precisam de apoio e suporte.
Não são raros os casos em que uma pessoa é diagnosticada com uma doença grave e se vê diante de um problema adicional: o abandono conjugal. O cenário é ainda mais comum entre as mulheres, que lidam com uma maior incidência do câncer de mama (depois do câncer de pele não melanoma), com 74 mil casos novos previstos por ano até 2025.
O caso mais recente e que ganhou os holofotes foi o da cantora Preta Gil, 48 anos, que foi diagnosticada recentemente com câncer de intestino. Pouco após o anúncio da doença, veio a notícia de seu divórcio com o personal trainer Rodrigo Godoy.
Para a psicóloga da Clínica AMO, Paula Xavier, que atua no serviço de oncologia, é importante compreender como as relações estão se dando, mesmo antes do diagnóstico.
“Tenho muito cuidado [com este assunto]. Nomeamos como abandono conjugal motivado pelo diagnóstico oncológico, mas o que precisamos é entender como essa família se configura no momento, se há intimidade, parceria, comunicação franca, projetos comuns ou há um distanciamento, conflitos”, ponderou.
De acordo com Paula, é necessário ainda identificar as crises. Ela lembrou que existem casos em que casamentos se sustentam e ganham mais intimidade, a partir de um adoecimento. “Existem famílias que não se desorganizam a ponto de um divórcio e/ou abandono, por isso devemos pensar nesse caminho e não olhar apenas para o diagnóstico da doença oncológica. Seria irresponsável da nossa parte”, afirmou.
“Pensamos muito nesse papel de cuidador que culturalmente é mais desenvolvido pela mulher, então a gente observa menos mulheres se separando a partir de um diagnóstico do esposo. O que se comenta e se observa é o contrário: quando é uma paciente mulher que é diagnosticada e o esposo separa, ou quando um filho adoece e a mulher assume esse papel de cuidado e o esposo deixa o lar”, complementou.
Segundo Paula Xavier, ao falar de um divórcio ou separação, é importante observar que ele se dá por diversos fatores, enquanto o adoecimento é apenas um “motivo que se sobrepõe”.
“É importante pensarmos que o adoecimento oncológico pode ocorrer durante uma crise vivenciada por essa família, e devemos pensar como essa dinâmica está antes do diagnóstico e quais os recursos essa família tem para lidar com a crise imposta pelo diagnóstico, quais recursos tem ou precisa desenvolver para se ajustar ao tratamento. Tem famílias que precisam mudar de cidade, abrir mão de emprego, mudar papel de quem era provedor, quem cuidava da família. Então, essa necessidade contínua de ajustamento nem sempre as pessoas vão estar disponíveis ou ter condições, mas principalmente porque precisamos olhar quem é esse casal antes da doença e como ele se reorganiza após a doença”, ressaltou.
Efeitos no tratamento
Quando essa separação ou abandono acontece em meio a um tratamento oncológico, a psicóloga ressalta que pode se estabelecer uma “crise sobreposta”, em que aquele paciente já está lidando com uma doença e perdeu seu parceiro e pessoa com quem contava.
“Neste contexto, é olhar pro sujeito que vivencia esse sofrimento de mais uma crise, e quais recursos tem para lidar com isso. Esse subsistema conjugal, até que ponto ele estava funcional? Às vezes, essa paciente já não contava com o esposo em nenhuma medida”, pontua.
Diante deste quadro, Paula Xavier aponta, como possíveis efeitos, aos pacientes o impacto na adesão ao tratamento e até quadros de depressão.
“É um paciente que pode deprimir, mas o que observamos é um humor deprimido que pode impactar na adesão ao tratamento, na qualidade de vida. Então, acho que a ressalva que temos que ter como serviço de oncologia é pensar que essas famílias precisam ser olhadas com cuidado, afinal elas também são impactadas com o diagnóstico”, pontuou.
Já o psicólogo da Clínica Holiste, Cláudio Melo, ressaltou ser “amplamente reconhecido pela psicologia e medicina” que o sofrimento psicológico possui um impacto significativo na evolução do quadro clínico no adoecimento físico.
“O suporte emocional fornecido pelas pessoas próximas e uma assistência psicológica adequada são fundamentais para uma boa recuperação. Atuo em uma clínica psiquiátrica onde valorizamos muito o papel da família no tratamento do paciente. Atuamos inclusive como mediadores em conflitos familiares advindo do adoecimento e tratamos a família que sofre também”.
Neste ponto, o psicólogto afirmou ser fundamental que instituições e equipes terapêuticas em outras áreas também reconheçam a importância do “suporte psicológico para o paciente e a família e que contem com profissionais capacitados para prestar essa assistência”, disse.
Segundo o especialista, contar com apoio após um diagnóstico grave é de extrema importância. Conforme Cláudio, o laço social pode ser responsável por diminuir o “desamparo diante da imensidão do real de nossa existência”, já que permite elaborar e compreender essa “fragilidade”. “Por isso, é comum que busquemos escuta e atenção quando estamos passando por situações de extremo sofrimento”, disse.
“Embora o laço social sirva para nos apoiar diante da devastação criada pelo real de nossa finitude, ele também pode ser outra fonte de mal-estar. Muitas vezes, somos surpreendidos pelo desamparo social justamente das pessoas próximas quando estamos em um estado de sofrimento, pois essas pessoas querem ocultar sua própria finitude e impotência fechando os olhos para a dor do outro. O que elas não percebem é que isso só aumenta ainda mais o sentimento de abandono e sofrimento da pessoa que padece de uma enfermidade grave”, complementou.
Casos diversos
Nesta linha, a publicitária e palestrante Paula Dultra, diz que já se deparou com diversos relatos desta natureza. Ela também é criadora do Blog Mão na Mama, em que ela compartilha histórias sobre como venceu o câncer de mama e de ovário, além de ajudar pessoas diagnosticadas com a doença.
“Tenho o blog há 11 anos e, nesse tempo, já escutei e presenciei muitas histórias. Na grande maioria das vezes, o casamento já não era bom e aí, na primeira dificuldade, a pessoa ‘apronta’ ou mostra sua verdadeira face. Muitas mulheres encaram como ‘livramento’. Tem o período de tristeza, mas como o foco é a sobrevivência, várias terminam dando a volta por cima e ressurgindo mais fortes. Infelizmente, algumas levam essa mágoa pro resto da vida. Mas é fato: quando o casamento é bom, há respeito, carinho, parceria e consideração, vemos um quadro contrário: parceiros participativos, acompanhando, entendendo e apoiando”, salientou.
Para Paula, o quadro encarado por essas mulheres é “cruel e desumano”. “A pessoa já está lidando com uma situação extrema, com um diagnóstico de uma doença que ameaça sua vida e ainda vai lidar com abandono? Com traição?”, questionou.
Por fim, ela também ressaltou a importância das pessoas diagnosticadas contarem com uma rede de apoio, que pode ser de familiares, amigos e até de pessoas que passaram pela doença.
“A rede de apoio é essencial. Mesmo que não seja da família, mas podem ser amigos e outras pessoas que passaram pela doença, como grupos de apoio em clinicas e hospitais. Sem isso, a pessoa se sente sozinha. E esse quadro também torna difícil a adesão ao tratamento. Quando não há essa rede de apoio próxima, além do suporte profissional de um psicólogo, a pessoa pode procurar ONGS como o Instituto Oncoguia que vão colocá-la em contato com outras pessoas que tiveram a doença e ela também pode buscar na internet perfis que nem o meu (@maonamama), de pacientes que já prestam esse serviço de acolhimento”, listou.
Fonte: Jornal da Chapada
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