[ENTREVISTA] A Vocação para cuidar do Outro
Carlos Vasconcelos tem 22 anos e está prestando vestibular para ingressar na faculdade de medicina. Residente em Bragança Paulista (SP), o estudante é filho de Magaly, que foi diagnosticada com mieloma múltiplo em estágio avançado em 2010, após uma extenuante busca pelas razões de tantas dores ósseas.
À época, sem que sequer soubesse o que faz um médico oncologista – muito menos o significado da palavra mieloma - Carlos assumiu de perto os cuidados da sua mãe e, mais de longe, a uma legião de pacientes brasileiros acometidos pelo câncer.
Em meio ao impacto dos inúmeros eventos graves pelos quais passou Magaly, que a deixaram em coma e com fraturas ósseas, Carlos estudou, pesquisou, conheceu grupos de apoio e tornou-se um portador de informações sobre o câncer na internet. Criou no Facebook a página Combate ao Câncer (hoje com quase 314 mil seguidores) e o blog com o mesmo nome, e se comunica com pessoas de todo o país levando informações sobre a doença e tratamentos.
Quem o escuta falar com tamanha criticidade sobre a falta de consenso entre o Ministério da Saúde e à ANVISA a respeito da aprovação da lenalidomida, pode entender que além da importância fundamental na vida da mãe e de tantos outros pacientes, ele tende a ser um grande profissional da saúde.
"Não houve uma atividade dos órgãos para promover a qualidade de vida que esse medicamento pode proporcionar aos pacientes que não responderam a outras terapias (...) também poderiam pedir mais a eletroforese de proteínas séricas”.
Confira a entrevista na íntegra.
Instituto Oncoguia - A sua mãe é paciente com mieloma, certo? Qual é o nome dela e quando foi diagnosticada?
Carlos - O nome dela é Magaly, ela foi diagnosticada com muita demora em março de 2010. No início daquele ano, ela começou a reclamar de dores na coluna, mesmo assim nunca faltou no trabalho do qual se orgulhava, de empregada doméstica. Só parou de trabalhar quando suas pernas travaram. Foi ao hospital público da nossa cidade e o médico prescreveu um analgésico sem se dar ao trabalho de pedir exames. Após a medicação, ela recebeu alta e voltou para casa, com dor.
Outro médico que havia atendido minha mãe solicitou raios X. Informou que se tratava de uma hérnia, e que bastava que ela fizesse sessões de fisioterapia que tudo ia melhorar (...). Depois, ela começou a delirar, já não conseguia se levantar da cama, não ingeria alimentos, e a única coisa que pedia, dia e noite, era água (...). No fim de fevereiro a levamos a um neurologista, professor do hospital público da Faculdade de Medicina São Francisco. Ela foi atendida rapidamente e já com exames de ressonância magnética em mãos, o médico observou vários ossos comprimidos. Disse que era muito grave, e que ela precisaria ser internada imediatamente para a realização de outros exames. Os resultados da maioria dos exames estavam alterados, principalmente os de sangue. Nas radiografias, o médico pode constatar várias lesões em ossos de todo o corpo: no crânio, no braço, nas pernas, e principalmente, na coluna vertebral e costela.
O neurologista nos pediu para ir até o setor de oncologia (eu nem sabia o significado dessa palavra). Chegando lá, o onco-hematologista rapidamente saiu para explicar e disse que se tratava de câncer, que estava localizado na medula óssea, chamado mieloma múltiplo.
Instituto Oncoguia - Quando sua mãe adoeceu, você sabia alguma coisa sobre o mieloma?
Carlos - Eu não sabia nada sobre mieloma, e nem sobre outro tipo de câncer ou doença. Eu tinha medo de hospital, de sangue, de agulhas. Jamais imaginei que eu iria passar por isso. Eu me via chorando e pensava que quando uma pessoa estivesse com câncer, sua sentença seria a morte. Após a conversa com o oncologista, o tratamento apresentado foi de quimioterapia e medicação para os ossos. O delírio da minha mãe continuava, e o médico disse que isso aconteceu por causa dos rins, que entraram em colapso devido à absorção de proteínas que saíram dos ossos. Minha mãe recebeu a notícia de que estava com câncer e, mesmo delirando, soube entender. Perguntou se ia perder o cabelo, chorou, e resolveu encarar toda a situação.
Instituto Oncoguia - É comum que haja, nas famílias de pacientes com câncer, aquele que ‘assume’ os cuidados. No caso de sua família, foi você?
Carlos - Sim, comecei a cuidar da minha mãe. Durante a internação fiquei de acompanhante no hospital para observá-la e ajudar caso ela precisasse de alguma coisa. Após a sua alta, continuei acompanhando-a nas consultas e na quimioterapia ambulatorial. Sempre perguntava para as enfermeiras o que era aquela bolsinha de soro que estavam injetando na veia, qual o nome do remédio, para que servia, se causava algo. Fui e continuo sendo muito curioso a respeito disso.
Instituto Oncoguia - E qual considera que seja a importância, para a sua mãe, do seu cuidado e atenção irrestrito às questões relacionadas à doença?
Carlos - O cuidado e a atenção ajudam o paciente a se sentir seguro durante o tratamento. Minha mãe gosta que esteja por perto. Sempre que ela tem uma dúvida, vamos juntos e perguntamos ao hematologista. É muito bom, além de tudo, poder aprender e saber como lidar nessas horas.
Instituto Oncoguia - E qual foi seu ponto de partida para ajudá-la? Como se aproximou do mieloma? Compreendeu a doença e as necessidades do paciente acometido por este câncer?
Carlos - Após o diagnóstico, meu ponto de partida foi a internet. Comecei pesquisar tudo sobre o mieloma: o que era a doença, como ela se instalava, o que o desencadeava, onde se localizava, os cuidados que os pacientes deveriam ter no tratamento e com as fraturas etc.
Instituto Oncoguia - Você é um mobilizador online nas questões relativas, não somente ao mieloma, mas ao câncer de forma geral. Fale um pouco do histórico de seus blogs e página do Facebook.
Carlos - Após a saída da minha mãe do coma e a sua alta nasceu um enorme desejo de me aproximar dos pacientes, de poder ter um contato com outras pessoas. Pensei em criar alguma coisa na internet. Fiquei alguns dias pensando, e nesse momento surgiu uma página no facebook chamada Combate ao Câncer. A página teve uma repercussão muito rápida, de um dia para o outro, mais de MIL PESSOAS já haviam curtido. No decorrer dos dias esses números só se multiplicavam.
Achei muito importante também a criação de um site onde eu pudesse postar novidades, histórias de superação que as pessoas me enviam, depoimentos, vídeos sobre o câncer, tudo relacionado à doença. Foi ai que surgiu o Combate ao Câncer.
Instituto Oncoguia - Em que esse engajamento ajuda a sua mãe?
Carlos - Minha mãe sempre diz que aprendeu a nunca reclamar das coisas. Esse engajamento proporcionou que ela acompanhasse também a história de outros pacientes com mieloma e com outros tipos de câncer. Pudemos observar que mesmo pessoas que estavam em um estado um pouco mais grave, não deixaram de sorrir, de levantar a cabeça e acreditar no tratamento, em Deus, ter fé e não desanimar. Isso motivou minha mãe ainda mais a se manter de pé, encarar o tratamento e mostrar para a doença que quem controla a vida é ela e não os sintomas ou os efeitos colaterais.
Instituto Oncoguia - E os outros pacientes com quem se comunica. Como tem se relacionado com eles e como isso pode ajudá-los?
Carlos - No começo, poucos pacientes me mandaram fotos de quando perderam seus cabelos na quimioterapia. Assim que outros viram começaram a gostar da ideia e a mandar também. Foi uma onda de felicidade. Cada um com seu estilo e com um modo diferente de encarar a vida. Também recebo depoimentos, fotos e pedidos para que a gente encontre matérias sobre determinados tipos de câncer e que sejam postadas nas páginas. Nenhum diagnóstico ou opinião sobre o câncer é dada; desde a criação da página sempre soube que a função não era essa.
A página é muito alegre e tem pacientes de todos os jeitos e estilos. Também têm simpatizantes, pessoas que não tiveram câncer e que são mobilizadores ativos da causa, compartilham, divulgam, tiram fotos com cartazes dizendo que apoiam a luta contra o câncer. Isso me deixa muito feliz!
Instituto Oncoguia - Por sua experiência, quais considera que sejam as principais urgências dos pacientes acometidos pelo mieloma?
Carlos - Acho que precisa melhorar muita coisa. Principalmente diagnóstico e tratamento. No SUS, ainda se demora a marcar consultas e nem sempre o paciente sai com pedido de exames em mãos. No pronto socorro precisa haver mais investigação quando o paciente diz ter dor na coluna associada com outros sintomas relativos ao diagnóstico do mieloma.
Pelo que sei, também poderiam pedir mais a eletroforese de proteínas séricas. Segundo aprendi em encontros de mieloma, o exame é tão barato e pode ajudar a localizar a doença mais facilmente.
Na questão do tratamento, falta um consenso do Ministério da Saúde com a ANVISA. Os pacientes precisam da medicação lenalidomida, que foi aprovada em 2005 nos EUA, enquanto aqui, até hoje, não. Não houve uma atividade dos órgãos para promover a qualidade de vida que esse medicamento pode proporcionar aos pacientes que não responderam a outras terapias, ou mesmo aos que preferem não fazer transplante por medo ou opção particular.
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