[ENTREVISTA] Câncer Raro: Um Panorama Brasileiro
Vinte e oito de fevereiro é o Dia Mundial de Doenças Raras, data em que organizações de pacientes de diversos países do mundo mobilizam-se para chamar a atenção de governos, imprensa e sociedade civil para os graves problemas enfrentados por portadores de doenças de baixa incidência ou raras. Entre milhares dessas doenças já conhecidas pela medicina estão os cânceres raros, tumores que se desenvolvem em lugares diferentes ou que são oriundos de linhagens celulares diferentes das comuns.
Para discutir o panorama dos tumores raros no Brasil, o Portal Oncoguia entrevistou o oncologista clínico Otávio Clark, presidente e diretor da Evidências - Credibilidade Científica, consultoria com sede em Campinas (SP), que objetiva solucionar problemas através das técnicas da Medicina Baseada em Evidências (BEM) e assistir nos processos de decisão relacionados a tecnologias em saúde e análises de mercado.
Dr. Clark pontuou e caracterizou os inúmeros problemas relacionados ao tema e afirmou que o Brasil, definitivamente, não tem desenhada uma política pública para qualquer doença rara (e não somente para os cânceres raros). Tratamentos sem cobertura do SUS (Sistema Único de Saúde) e médicos pouco preparados para lidar com os pacientes são apenas alguns dos problemas.
Para o oncologista, falta compreensão do governo e gestores de sistemas de saúde sobre as doenças raras: "Da mesma forma que falta conhecimento para o governo federal que regula o registro e a aprovação de medicamentos no SUS, eu acho que também falta conhecimento de uma parte dos sistemas de saúde que fazem a regulação de cobertura contratual. Eles precisariam entender doença rara como uma coisa diferente, que não pode ter o mesmo tratamento das doenças comuns”.
Na entrevista, Dr. Clark ainda apontou para possíveis soluções, ou medidas de minimização dos problemas enfrentados pelos pacientes.
Confira!
Instituto Oncoguia - Para começarmos, o que são cânceres raros?
Dr. Otávio Clark - Na realidade, a maior parte dos tumores são tumores comuns, que atingem a maior parte das pessoas, como o de mama ou de pâncreas. Os tumores raros são assim chamados por serem de baixa incidência, originários em locais incomuns ou em locais comuns, mas de tipos celulares raros. Por exemplo, a glândula pineal, também conhecida como hipófise, que fica bem no meio do cérebro, pode, muito raramente, originar um tumor de tipo celular germinativo. Como é incomum, o tumor pode receber a denominação de câncer raro.
No Brasil, não existe uma definição formal para doenças raras ou para cânceres raros. Mas são aqueles que fogem do comum - se desenvolvem em lugares diferentes ou têm uma linhagem celular diferente. Como exemplo, o câncer de mama. Enquanto o tipo mais comum é o adenocarcinoma, há o tumor neuroendócrino (outro tipo celular) de mama, um tumor raro, já que a sua célula originária é pouco comum. Outro exemplo é o câncer de tireoide. Enquanto o folicular e o papilar são comuns, o carcinoma medular de tireoide é raro.
Eles são tumores de tratamento difícil porque há muito pouca informação sobre o assunto. A gama de tipos de tumores raros é muito grande.
Instituto Oncoguia - No contato com pacientes que têm cânceres raros, o que percebemos é que há dificuldades desde a busca por um diagnóstico exato. Qual a sua opinião sobre isso?
Dr. Otávio Clark - Na realidade, a pessoa às vezes tem um diagnóstico de um câncer e tem uma doença pré-existente e nem sempre as coisas estão relacionadas. Não é incomum você ouvir a história de que teve anemia por muito tempo e depois recebeu um diagnóstico de câncer. Mas são coisas normalmente independentes. A grande dificuldade existente hoje em dia não é tanto em relação ao diagnóstico dos cânceres raros, pois os diagnósticos normalmente são feitos pelos patologistas – ou, se eles não fazem, ao menos apontam que não é uma linhagem celular comum e é possível fazer testes mais sofisticados que levam a um diagnóstico mais preciso. O grande problema, na verdade, é o tratamento. Como são poucos casos, a experiência no tratamento desses tumores é limitada. Por exemplo, o disgerminoma de pineal, é um tumor extremamente raro, mas aconteceu de eu ter quatro casos desse câncer numa mesma época quando eu trabalhava em um centro de tratamento e radioterapia. E essa foi uma grande casuística no mundo naquele período. Você imagina quatro casos ser uma casuística enorme? Muitas vezes você fica de mãos atadas, sem saber o que fazer, e termina tratando por analogia. No caso específico desse disgerminoma de pineal, nós tratamos como se fosse um disgerminoma comum. Funcionou, mas poderia não ter funcionado.
Instituto Oncoguia - Os médicos brasileiros em geral e os centros de tratamento oncológico estão preparados para diagnosticar e tratar essas doenças menos incidentes?
Dr. Otávio Clark - Definitivamente, os médicos brasileiros não estão preparados para lidar com o problema. Por dois motivos principais. O primeiro é que a maior parte desses tumores não tem o tratamento coberto pelo SUS, que não tem código para pagar tratamento de tumor raro. Então não é infrequente você ter um paciente com tumor raro que foge da descrição do sistema APAC (Autorização de Procedimentos Ambulatoriais de Alto Custo) do SUS, e você não conseguir um código que pague por esse tratamento. E o paciente merece e precisa de um tratamento. De novo o caso do disgerminoma de pineal: é um tumor curável com radioterapia, mas que não tem um código específico no SUS. E é um caso que se você não tratar, o paciente está condenando. É realmente um problema sério. O segundo, é que falta estrutura. É preciso pensar que a maior parte da população brasileira é segurada somente pelo SUS, e que boa parte dos serviços do SUS está espalhada em cidades de menor porte, com estrutura de anatomopatologia precária que não fazem sequer imunohistoquímica, um tipo de exame diagnóstico frequentemente necessário para se diagnosticar qual tipo de tumor a pessoa tem. São poucos os centros que fazem esse exame. E é um exame simples que não é caro.
Instituto Oncoguia - Consegue ver avanços nessa questão? O que seria necessário para que o país pudesse atender melhor esses cidadãos? Existe algum estado que está mais avançado no atendimento desses pacientes?
Dr. Otávio Clark - É complicado. Num país de dimensões continentais como o Brasil, não faz sentido ter espalhados pelo país inteiro hospitais preparados para operar nesse nível de complexidade. O que eu vejo que poderia ajudar são três coisas: ter na APAC uma codificação específica para tumores raros, pelo menos para os tumores raros mais comuns (por mais anacronismo que isso pareça), que conseguirmos mapear. E que houvesse um sistema de cobertura, tanto para quimioterapia quanto para radioterapia. Também deveria haver um sistema de intercâmbio da anatomopatologia que pudesse facilitar o diagnóstico desses tumores, onde os pacientes pudessem ser enviados para fazer o exame histológico em um local que tenha exame de imunohistoquímica ou algum outro exame genético mais avançado. Por fim, deveriam ser criados centros de referência para tumores raros, para onde os pacientes pudessem ser encaminhados para serem tratados. Mas essa terceira opção precisar ser pensada com cautela, pois, de novo, em um país de dimensões continentais como o Brasil, isso pode causar uma série de transtornos para o paciente e para a família. Isso porque muitas vezes não vai ter jeito, o paciente vai ter que se deslocar. Se você pensar em um Estado do tamanho de Minas Gerais, que tem um norte desabitado, você teria um centro de referência em apenas um lugar e o paciente teria que viajar. No país, sem sombra de dúvida São Paulo é o lugar que está mais avançado nessa questão, com a maior rede de hospitais credenciados. Mas não conheço nenhuma experiência específica voltada para cânceres raros.
Instituto Oncoguia - Muitas vezes, medicamentos comercializados e disponibilizados pela saúde pública em inúmeros países não são aprovados pela ANVISA. Onde o país está ‘esbarrando’ nessa questão?
Dr. Otávio Clark - O Brasil não tem uma política pública para doenças raras de modo geral, não só para cânceres raros. Isso é um erro. O sistema de aprovação de medicamentos pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e pela CONITEC (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) requer de um medicamento indicado para um câncer raro ou para uma doença rara os mesmos requisitos de um medicamento indicado para uma doença comum. Eles solicitam estudos randomizados, modelo de custo-efetividade, etc., o que é absolutamente inadequado. Na maior parte dos países desenvolvidos essas doenças são tratadas como um caso à parte, onde se entende que não é possível ter um estudo metodologicamente perfeito, que é impossível fazer uma análise do custo-efetividade desses medicamentos. Além disso, esses medicamentos são muito caros, porque o desenvolvimento deles é caro. Uma indústria investe bilhões para desenvolver um medicamento que vai tratar cem pessoas. Ela tem que diluir os custos dos bilhões para cem. Enquanto ela pode investir os mesmo bilhões para uma doença que vai tratar cem mil, e aí ela vai diluir o custo por cem mil. É por isso que um medicamento para doença rara é tão caro. Ele custa o mesmo, ou mais, para ser desenvolvido, mas para tratar uma população muito pequena. Ao que me parece, o governo brasileiro não entende isso.
Instituto Oncoguia - Essa questão da autorização de tratamentos com base em estudos randomizados se repete na saúde suplementar?
Dr. Otávio Clark - A maior parte dos convênios reconhece a questão das doenças raras e abrem exceções. Talvez alguns até abusem nestes quesitos, mas isso é absolutamente errado. Você tem que trabalhar com a melhor evidência disponível. E, como já falei, você nunca vai achar um estudo randomizado para uma doença rara, porque é impossível de ser feito. Acho que falta um pouco de educação dos gestores de sistemas de saúde. Da mesma forma que falta conhecimento para o governo federal que regula o registro e a aprovação de medicamentos no SUS, eu acho que também falta conhecimento de uma parte dos sistemas de saúde que fazem a regulação da cobertura contratual. Eles precisariam entender doença rara como uma coisa diferente, que não pode ter o mesmo tratamento das doenças comuns.
Instituto Oncoguia: Comparando-se o Brasil com países que estão mais avançados que nós nas questões relativas ao câncer, em que ‘pé’ estamos com relação à aprovação dessas drogas?
Dr. Otávio Clark - No Brasil não há um caminho específico que se possa dar para o tratamento das doenças raras, inclusive para os cânceres raros. Não há uma linha específica. Uma boa parte dos países tem uma linha à parte, em que essas doenças são tratadas como um capítulo especial, com requisitos diferentes para aprovar e disponibilizar uma nova droga. Os países como Estados Unidos, Canadá e Reino Unido reconhecem a importância da doença rara e tratam os estudos de maneira diferente. Eles não exigem um estudo de fase III quando sabem que isso é impossível de se fazer.
Instituto Oncoguia - O Sr. relatou que fizeram um grande levantamento sobre isso. Pode comentar?
Dr. Otávio Clark - Nós fizemos um levantamento da parte regulatória do mundo inteiro, que foi publicado pela Shire, indústria farmacêutica especializada em doenças raras, e que está disponível para download na nossa página na internet Evidências e também no nosso facebook (Evidencias Credibilidade Científica). Essas publicações apresentam como os processos de doenças raras são tratados no mundo inteiro. Também fizemos um levantamento sobre o tratamento de algumas doenças raras (não cânceres raros) com os estudos disponíveis. No total foram seis publicações, sendo que a primeira e a últimas versam sobre essas questões: como deve ser um estudo clínico para uma doença rara, como é que pode ser feito o processo de regulação de doenças raras e que caminhos são possíveis. Nós mapeamos o conhecimento das agências regulatórias do mundo inteiro. Quem tiver interesse em se aproximar do tema, acho que é uma leitura interessante.
Instituto Oncoguia - É possível perceber uma maior intenção e atenção da saúde brasileira com relação à entrada desses medicamentos? Algum exemplo que possa destacar?
Dr. Otávio Clark - Não. Eu acho que o Brasil peca tanto no processo de aprovação quanto no processo de incorporação no sistema público. Existe algum esforço sendo feito pelo Ministério da Saúde para tentar melhorar o processo. Mas o processo ainda é lento e ainda é inadequado para tratar doenças raras.
Instituto Oncoguia - E quanto a medicamentos que já estão aprovados pela ANVISA, eles vêm sendo incorporados com a ‘rapidez’ necessária? Acredita que a CONITEC está agilizando ou poderá agilizar a esse processo?
Dr. Otávio Clark - De jeito nenhum! Eu acho que a CONITEC, que é o principal órgão para aprovação dessas drogas para incorporação no sistema público, precisava ter um processo à parte para doenças raras. Nós temos ouvido falar que eles estão interessados em abrir isso, e também ouvimos sobre alguns esforços que estão fazendo nessa direção, mas até agora o processo não mudou. Um exemplo é que um dos requisitos da CONITEC para submeter um formulário é a realização de um estudo de custo-efetividade. Se você não fizer o estudo e não fizer o upload do estudo no formulário de submissão, você não consegue submeter um medicamento novo. Só que é praticamente impossível fazer um estudo de custo-efetividade para uma doença rara. Como é que você vai cumprir esse requisito da CONITEC se não dá para fazer? Então fica realmente complicado. Assim como a CONITEC já fez um processo diferenciado para procedimentos, medicamentos e para equipamentos, eu acho que precisava haver um processo diferenciado para doenças raras.
Instituto Oncoguia - A participação em pesquisas clínicas pode ser uma única opção terapêutica para determinados pacientes. Há estudos clínicos sendo realizados no país em torno de medicamentos para cânceres raros e de baixa incidência?
Dr. Otávio Clark - Não existe um investimento sistemático em pesquisa clínica no Brasil e muito menos para doenças raras. Então o acesso desses pacientes a tratamentos mesmo dentro de um protocolo clínico é difícil e bastante complicado. Existem alguns centros que fazem esse tratamento, mas são poucos. Os estudos de fase I estão ligados ao desenvolvimento de medicamentos, e nós não temos estudos de desenvolvimento de drogas aqui no Brasil. Não se descobre uma droga brasileira, apesar de termos uma flora imensa em que se poderiam fazer inúmeras pesquisas. Um segundo ponto é a parte regulatória. Nós temos um entrave regulatório e ético imenso aqui no Brasil, e em minha opinião isso acaba prejudicando o desenvolvimento científico e atrapalhando o acesso dos pacientes a novos tratamentos, porque a burocracia emperra esse processo inteiro.
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