Pele a salvo: como se cuidar contra o câncer
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Há poucas coisas tão singelas e reconfortantes quanto a sensação de ter o quentinho do Sol tocando nosso corpo. Nessas horas, talvez nem lembremos que a estrela guarda os segredos da origem e da manutenção da vida no planeta.
“O Sol nos aquece, nos alimenta e permite que enxerguemos. Ele fecunda a Terra. Seu poder está além da experiência humana”, escreveu o astrônomo Carl Sagan em Cosmos (compre aqui), sua obra-prima de divulgação científica. “Nossos ancestrais o adoravam e estavam longe de ser tolos”, refletiu o autor.
Para além das dádivas, nossos antepassados também perceberam a força destrutiva do astro, causador de secas, queimaduras e… tumores na pele. Por isso, desde remotas eras, a humanidade tentou desenvolver formas de se resguardar do Sol.
Em 3000 a.C., os egípcios usavam farelo de arroz, jasmim e sementes de tremoço como um protetor solar primitivo. Já os gregos preveniam e tratavam queimaduras com azeite de oliva. No século 1, o imperador romano Nero exibia uma espécie de óculos de sol feitos de esmeraldas.
Numa tradição que se perpetua, comunidades no Saara usam roupas que cobrem o corpo todo para evitar os raios calorosos. Mas a maior invenção humana com o propósito de nos defender do sol só surgiria no século 20 — e hoje é encontrada em qualquer farmácia.
Protetor solar
O filtro solar foi criado pelo químico suíço Franz Greiter e inicialmente tinha um fator de proteção solar (FPS) nível 2. Chegou às prateleiras em 1946. Graças aos avanços da ciência, hoje dispomos de fórmulas bem mais eficazes, cujo FPS chega a 100.
“Os filtros solares possuem moléculas que formam barreiras físicas e químicas capazes de bloquear a radiação ultravioleta (UV) do sol, evitando que ela seja absorvida pela pele”, explica o dermatologista Caio Lamunier, do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp).
Quanto maior o fator de proteção, maior é a porcentagem de raios UV bloqueados. Um filtro de FPS 30, o mínimo recomendado pelos profissionais de saúde, por exemplo, impede que 97% da radiação seja captada por nossa pele.
Fatores maiores podem chegar aos 99%, mas nenhum repele completamente a radiação. É um produto revolucionário, sim. Mas não faz milagres. É preciso usá-lo na quantidade correta e reaplicá-lo — sem economia!
Uma passadinha tampouco dá sinal verde para ficar horas exposto ao sol pegando um bronzeado. O racional é aderir a outras medidas de proteção, como evitar ficar ao ar livre em certos horários e usar roupas compridas, chapéus e óculos sob um sol de rachar.
Como dizem, uma andorinha só não faz verão. E no verão — ou em qualquer dia ensolarado, a despeito da estação —, convém combinar estratégias para salvaguardar a pele e prevenir a maior ameaça a ela, o câncer.
Como cuidar da pele contra o sol
Milhões de novos casos de tumores cutâneos são diagnosticados anualmente em todo o mundo. Para não entrarmos nas estatísticas, especialistas preconizam a adoção de um mix de cuidados para a pele — questão que ganha relevo no verão, mas continua valendo ao longo dos outros meses.
Não adianta apostar todas as fichas em uma única medida de resguardo, eventualmente sujeita a falhas. E a primeira orientação é prestar atenção ao jeito correto de utilizar o filtro. Caso contrário, corremos o risco de cair numa armadilha batizada pelos cientistas de “paradoxo do protetor solar”.
Ela descreve um comportamento corriqueiro por aí: após passarem o produto, muitas pessoas se sentem mais à vontade para se arriscar ao sol. Trata-se de um fenômeno que preocupa a comunidade médica.
Em um estudo recém-publicado, pesquisadores do Canadá avaliaram hábitos da população que vive na costa atlântica do país da América do Norte. Para a surpresa deles, cidadãos que moravam na Nova Escócia e na Ilha do Príncipe Eduardo, províncias com maior número de casos de melanoma (o tipo mais agressivo de câncer de pele), relatavam maior uso de protetor solar e diziam-se mais conscientes dos perigos do sol.
Porém, ao mesmo tempo, participavam mais de atividades a céu aberto, expondo-se à radiação. Conclusão: há muito a ser feito em matéria de conscientização e (re)aplicação adequada do filtro solar.
Precaução à brasileira
Com a chegada do verão, os esforços rumo à prevenção se encorpam com as ações do Dezembro Laranja, campanha criada pela Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) que promove atendimentos gratuitos, palestras sobre o tema e outras atividades de sensibilização.
“Cada vez mais se observa uma atuação da sociedade civil, junto aos órgãos públicos de saúde e entidades privadas, em prol da elucidação de fatores de risco e atitudes preventivas”, diz Aparecida Machado de Moraes, coordenadora do Departamento de Oncologia Cutânea da SBD.
Iniciativas do gênero se mostram urgentes frente ao grande número de tumores cutâneos diagnosticados no país.
Segundo a projeção do Instituto Nacional de Câncer (Inca) para o triênio de 2023 a 2025, serão diagnosticados 704 mil casos de tumores a cada ano no Brasil — número que engloba mama, próstata, pulmão… Desses, 220 mil serão de câncer de pele não melanoma.
Ou seja, mais de 30% do total. Outros 9 mil casos serão de melanoma, o tipo mais grave. As lesões malignas se formam à medida que nossa pele não consegue se recuperar de danos provocados pela radiação ultravioleta. Os raios UV atravessam suas camadas e alteram o DNA das células.
No geral, o corpo está apto a reparar esses e tantos outros enroscos diários, mas, quanto maior a exposição solar, maior também é o risco de o estrago evoluir para um câncer. Não bastasse a enfermidade, que tende a demorar anos para se manifestar, o contato com o sol propicia queimaduras, manchas, rugas…
Portanto, a ideia de se bronzear para ficar no padrão de beleza pode se tornar um imbróglio no longo prazo. E aqui falamos tanto de bronzeamento natural como artificial — procedimento proibido no Brasil, diga-se.
Nos Estados Unidos, mais de 419 mil casos de câncer de pele estão associados às sessões em clínicas. Segundo a Academia Americana de Dermatologia, a prática aumenta o risco de desenvolver carcinoma basocelular em 24% e espinocelular em 58%.
Esses são os tipos de câncer de pele mais comuns, correspondendo a 90% dos casos em todo o mundo. Para piorar, o uso das câmaras ainda amplia a chance de ter melanoma em até 75%. Não é à toa que, desde 2009, o serviço é vetado em solo brasileiro. Ainda assim, não dá para extrapolar com o sol.
Fatores de risco
Qualquer pessoa está sujeita a um tumor de pele, mas realmente aquelas com fototipos I e II, isto é, que têm a cútis, cabelos e olhos mais claros, estão na zona de maior risco.
São aqueles indivíduos que sempre se queimam na praia, cuja pele é sensível e raramente fica bronzeada. Neles, os tumores costumam aparecer em partes mais expostas ao sol, como rosto, pescoço e braços.
“No caso de cânceres não melanoma, é importante ficar de olho em feridas que não cicatrizam, sangram e em nódulos. O melanoma se manifesta por pintas irregulares, com diferentes tons e que crescem com o tempo”, descreve o cirurgião oncológico João Pedreira Duprat Neto, líder do Centro de Referência em Tumores Cutâneos do A.C.Camargo Cancer Center, na capital paulista.
Já pessoas de pele mais escura estão mais protegidas pela melanina, pigmento natural que dá cor à pele e funciona como um escudo ante a radiação UV. Ainda assim, pretos e pardos não estão imunes ao perigo.
“A pele negra possui mais melanina, o que confere uma fotoproteção quatro vezes maior comparada à pele branca. Mas ela mancha com facilidade e há o risco de desenvolver tanto câncer espinocelular como melanoma, a doença que matou Bob Marley”, diz a dermatologista Katleen da Cruz Conceição, chefe do Ambulatório de Dermatologia para Pele Negra da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro.
Áreas mais claras do corpo, como palma das mãos, planta dos pés e unhas, cobram cautela extra.
No Brasil, estima-se que sete em cada dez episódios de câncer de pele estejam concentrados nas regiões Sul e Sudeste.
“Isso se deve ao perfil da população, que tem mais pessoas brancas, e ao acesso mais fácil ao diagnóstico nesses estados”, justifica o médico Dolival de Lobão Veras Filho, chefe da Seção de Dermatologia do Inca.
Não significa, porém, que o restante do país esteja a salvo. A subnotificação de casos e de diagnósticos é um problema do sistema de saúde que acomete principalmente as áreas afastadas dos centros econômicos.
Rumo ao diagnóstico
O dermatologista Itamar Santos, professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), conhece bem a realidade da sua região. Atuando no Hospital Universitário de Petrolina, no interior de Pernambuco, ele observa que um fator de risco preponderante nos arredores é a exposição solar durante o trabalho.
Pois é, não é só o solzão da praia nas férias que agride nossa pele. Os danos diários causados pelos raios UV se acumulam e nos colocam na estrada da propensão às lesões malignas. Isso é bastante prejudicial e preocupante para quem labuta sob o sol, como profissionais da agricultura e da construção civil.
Segundo relatório lançado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), uma a cada três mortes por câncer de pele não melanoma está relacionada à exposição ocupacional aos raios ultravioleta.
Calcula-se que 1,6 bilhão de pessoas em idade produtiva ao redor do planeta trabalhem ao ar livre, sob a mira da radiação, o que equivale a 28% de todos os trabalhadores em atividade no globo.
Pensando localmente, a equipe de Itamar também organiza ações de conscientização à população durante a campanha do Dezembro Laranja.
Em artigo publicado em 2022, eles relatam que, no atendimento a 168 pessoas durante um mutirão, foram encontradas manifestações pré-cancerosas em 22% dos pacientes, lesões sugestivas ou confirmadas de carcinoma basocelular em 10%, de espinocelular em 4,2% e de melanoma em 1,2%.
Desde o início das ações, o especialista tem testemunhado avanços. “As empresas e os contratantes têm fornecido equipamento de proteção individual aos funcionários, como chapéus, luvas e uniformes que cubram todo o corpo. A importância do filtro solar também é de conhecimento geral. O desafio é fazer essa mensagem chegar a profissionais que trabalham de forma independente”, avalia Santos.
Se para uns é difícil encontrar médicos e serviços de saúde que atendam a essas demandas, para outros o diagnóstico felizmente tem chegado mais cedo.
“O movimento se dá tanto pela maior conscientização sobre os riscos da exposição solar quanto pelo avanço da tecnologia aplicada à dermatologia”, analisa Yuri Bittencourt, oncologista do Hospital Santa Catarina, em São Paulo. É um campo que não para de dispor de novos recursos.
Uma pesquisa internacional acompanhou mais de 22 mil pacientes com suspeita de câncer de pele por cerca de dois anos e meio e analisou a eficácia do uso da inteligência artificial no diagnóstico.
O computador identificou corretamente 92% das lesões pré-cancerosas, 99% de todos os casos de câncer de pele da população estudada e 100% dos melanomas. Contudo, ainda não há máquina melhor do que o ser humano nesse quesito.
Em estudo publicado na revista The Lancet Digital Health, uma equipe comparou o uso de aplicativos para diagnósticos à performance de médicos reais. Por mais que a eficiência em reconhecer lesões entre os dois fosse semelhante, os profissionais de carne e osso eram incomparavelmente mais aptos a determinar o melhor curso do tratamento.
Homem ou máquina, ambos terão mais trabalho pela frente com o contínuo agravo das mudanças climáticas. Segundo editorial do periódico The Lancet Oncology, ao analisarem a incidência da doença e dos raios solares no Reino Unido, especialistas preveem que o número de casos de câncer de pele na região cresça 50% nos próximos 20 anos.
Se o bicho pegará na Grã-Bretanha, imagine o que pode acontecer na zona tropical do planeta. De fato, há muitos fatores ambientais que podem levar a um boom de lesões cutâneas.
“A camada de ozônio é a principal estrutura atmosférica responsável por barrar boa parte dos raios ultravioleta que chegam à Terra. O crescimento dos buracos nela, por sua vez, amplia a entrada dessa radiação”, explica Wilson Roseghini, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
O aquecimento global também pode gerar períodos de seca, ondas de calor e menor ocorrência de nuvens, que também bloqueiam naturalmente os raios UV.
Segundo Dolival de Lobão, ainda é difícil determinar os efeitos desse fenômeno sobre a população brasileira. “Por aqui ainda não temos uma perspectiva do impacto”, afirma o especialista, que atribui o aumento no número de casos no Brasil à ampliação do acesso ao diagnóstico.
Tratamentos para o câncer de pele
Para o diagnóstico precoce, que faz diferença nas chances de cura, a SBD recomenda uma consulta anual com o dermatologista. A corrida pelo reconhecimento de casos, porém, parece não afetar a curva de mortalidade pela doença.
“Analisando dados de 1975 a 2015 dos Estados Unidos, percebe-se que a incidência cresceu de forma linear e constante, mas o número de vítimas fatais se manteve estável”, expõe Leandro Rezende, epidemiologista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Já em previsões futuras, o número de mortes pela doença deve se elevar. Segundo levantamento da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO) em cima de dados da OMS, o aumento de óbitos no país até 2040 pode ser da ordem de 80%. A porcentagem está acima da média mundial, de 57%.
Tais dados reforçam que não basta centrar esforços na prevenção e na detecção: o acesso a orientação e tratamento também é essencial. Para a dermatologista Regina Carneiro, professora da Universidade do Estado do Pará (UEPA), esse é o maior desafio em sua região.
“A maioria dos casos é tratada com uma simples cirurgia, mas aqueles que apresentam tumores disseminados precisam de opções mais robustas, e nem sempre as mais atualizadas e eficazes estão disponíveis”, afirma.
Médicos, estudiosos, pacientes e ativistas acreditam que essa realidade pode mudar aos poucos com a criação da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer (PNPCC) e do Programa Nacional de Navegação da Pessoa com Diagnóstico de Câncer, já aprovados pelo Senado.
“Os projetos buscam garantir o acesso ao cuidado integral dos pacientes oncológicos e assegurar um orçamento para a diminuição da incidência e da mortalidade por câncer no Brasil”, resume Luciana Holtz, fundadora e presidente do Instituto Oncoguia.
No âmbito do câncer de pele, a mobilização poderá facilitar a inclusão de novas técnicas e tratamentos, cirúrgicos ou medicamentosos, no SUS. No geral, a maioria das lesões malignas pode ser retirada com uma operação, sem necessidade de tratamentos sistêmicos.
Mesmo assim, há casos em que a remoção do tumor, ainda que pequeno, gera alguma deformidade. Por isso, os enxertos podem ser necessários para a completa recuperação — e a cicatrização pode demorar até um ano e meio. É um processo lento que chega a sacudir a autoestima e a saúde de qualquer um.
Por vezes, quando o tumor está espalhado e situado em uma área em que seria preciso retirar um grande pedaço de pele, é recomendado o uso de terapias para diminuir sua extensão primeiro e, então, realizar a cirurgia.
Para situações em que a doença se disseminou (metástase), sobretudo o melanoma, a imunoterapia e a terapia-alvo têm demonstrado resultados expressivos — realmente, um divisor de águas.
“A primeira é capaz de curar até pacientes com comprometimento cerebral pelo câncer. E a segunda é uma opção para quem tem certas mutações genéticas”, explica o oncologista Antonio Buzaid, do Instituto Vencer o Câncer e coautor do livro recém-lançado Vencer o Câncer de Pele e Melanoma: Evitar, Tratar, Curar, disponível gratuitamente neste link.
Da prevenção ao tratamento, muita coisa evoluiu. Resta cumprir nossa parte — faça sol, faça chuva — para ficar com a pele a salvo.
Reportagem publicada originalmente na revista Veja Saúde, em 15 de dezembro de 2023.
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