'Precisamos nos preparar para viver', diz psico-oncologista
Período pós-tratamento pode gerar medo e insegurança, mas buscar bases de apoio e criar um marco podem ajudar a viver a saúde e não a doença
Após o fim do tratamento, é natural sentir medo. "[Com o amparo da família, dos exames e dos médicos,] há uma sensação ilusória de que estamos ‘a salvo’. Parece que quando saímos dessa situação ficamos sem base segura”, explica a psico-oncologista Regina Liberato, coordenadora do Núcleo de Programas Multiprofissionais do Instituto Oncoguia e da Oficina de Convivência.
O problema, diz ela, é quando esse sentimento paralisa. "Estar presente nos eventos da vida e aproveitar o que ela nos oferece são muito valiosos e merecemos viver isso.” Confira, a seguir, a entrevista.
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Por que existe medo no fim do tratamento?
O medo é sentimento natural. Todo ser humano em situação de risco sente medo.
Enquanto enfrentamos o tratamento de câncer, nos vemos amparados com amplitude. Em geral, a família está voltada para nós, vamos ao médico periodicamente e nos submetemos a exames periódicos. Há uma sensação ilusória de que estamos "a salvo”. Parece que quando saímos dessa situação ficamos sem base segura. Muitas vezes regredimos a fases muito primitivas, e isso é mesmo assustador.
Como somos adultos, com autoconhecimento e consciência, aos poucos, retomamos nossa vida, nos readaptamos socialmente e vamos nos apropriando da alegria que é estarmos saudáveis.
Quais são esses medos?
Geralmente, o medo nos reporta a situações difíceis que enfrentamos. Temos medo de nos sentirmos vulneráveis novamente e de a doença nos alcançar a qualquer tempo, principalmente quando estivermos distraídos com a vida.
Além do medo, que outras emoções são comuns no fim do tratamento?
Alguns aspectos acompanham o processo de enfrentamento do câncer. Podemos encontrar sintomas ligados principalmente a depressão, ansiedade e fobias.
Com o desenvolvimento de pesquisas clínicas, avanço de técnicas, procedimentos e medicamentos e o consequente surgimento de novas possibilidades de controlarmos a doença e vivermos com mais qualidade, aparecem chances novas de manejar de maneira satisfatória esses eventos que envolvem a expressão integral dos indivíduos.
O medo acontece apenas em tratamentos mais duradouros ou é comum a todos?
Antes mesmo do tratamento, passamos pelo diagnóstico da doença. Como sempre digo, ninguém está parado, esperando o câncer chegar. Estamos vivendo e, de repente, temos uma notícia que vai alterar nossa vida.
Alguns têm a vida especialmente alterada: perdem o papel de provedor, passam de cuidador a cuidado, sentem-se perdendo possibilidades e potencialidades. Outros precisam restringir a vida pelo menos momentaneamente, como para se preparar para uma cirurgia.
Toda essa incerteza e insegurança nos coloca frente a um mundo de possibilidades ameaçadoras.
Há alguma reação no cérebro que explique isso?
Nós respondemos de maneira instintiva ao perigo. Quando somos confrontados com o que é percebido como ameaça, os humanos e os animais reagem de maneira semelhante. Os mecanismos fisiológicos que governam essa resposta têm origem nas partes primitivas do cérebro e do sistema nervoso, e não estão sob o nosso controle.
O nosso cérebro, que é com frequência chamado de cérebro trino, consiste em três sistemas integrados: o reptiliano (instintivo), o límbico (emocional) e o humano ou neocórtex (racional).
Responder a uma ameaça envolve muitas partes dele. Mas, se pudermos pensar em qualquer estrutura isolada como central para o processo da experiência do medo, seria a amígdala—um agrupamento de neurônios situado em cada lobo medial temporal, localizado bem acima do tronco cerebral.
Para nós, é importante saber que reagir àquilo que ameaça a vida é natural – portanto, saudável. O excesso pode causar paralisação e impedir o movimento, portanto não saudável.
Como saber se o que a pessoa está sentindo é um medo saudável ou algo que passou do limite?
Todos os sentimentos e emoções são saudáveis. Medo, raiva, amor, alegria e tristeza são expressões da natureza humana. A forma como acessamos esses sentimentos e emoções é que torna a experiência saudável ou não.
Quando estamos nos dirigindo para um precipício, por exemplo, o que nos avisa do perigo é exatamente o medo, e, portanto, ele funciona como protetor. Quando o sentimento nos excede, a ponto de nos paralisar, aí ele nos prejudica.
A vida é dinâmica, estamos sempre em movimento. Quando algo nos paralisa, abrimos uma porta para a doença.
Criar um marco para o fim do tratamento (uma viagem, um passeio, uma festa) pode ajudar na transição?
Sim. Não sei se esses eventos que você citou, já que cada um deve achar o melhor para si. Mas começar a compreender a vida a partir da saúde e não da doença é um marco.
Precisamos nos preparar para viver. Dar conta da vida é tão complexo como o processo de enfrentar uma doença tão abrangente como o câncer – ou mesmo o processo de morrer. Estar presente nos eventos da vida e aproveitar o que ela nos oferece são muito valiosos e merecemos viver isso. Todos nós!
Quando procurar ajuda?
Nunca encontrei alguém que precise de ajuda e não saiba. Mas, muitas vezes, não nos abrimos para essa perspectiva. Precisamos aprender que não somos perfeitos. Todos nós temos pontos fortes e frágeis. E sempre estamos precisando de alguém para algo que não podemos fazer por nós mesmos ou sozinhos.
No caso de estarmos tomados pelo medo, quanto mais cedo procurar ajuda, melhor será. Quando notarmos que ele começa a nos restringir naquilo que já fazíamos, precisamos sair desse lugar. O medo parece ter um fermento natural – as nossas fantasias –, que o alimenta.
Eu sempre acho que ajuda especializada é mais bem capacitada e, portanto, um bom investimento. Não é aconselhável perder tempo e energia menosprezando o problema. É preciso um diagnóstico preciso e diferencial, inclusive para saber qual o plano terapêutico mais apropriado.
Quais podem ser os "pontos de apoio” do ex-paciente?
Os locais que oferecem amor, compaixão e cuidado caracterizam-se como apoios de excelência. Onde existe aceitação e amorosidade, nós podemos descansar e confiar no futuro. Um ambiente configurado dessa maneira contribui para a nossa saúde. A família, os amigos e nossa equipe de cuidados podem ser apoios verdadeiros e permanentes.
Por QSocial