Quem cuida de quem cuida?

Cozinhar, limpar, cuidar de crianças, idosos… Você sabia que 76% do trabalho de cuidado não remunerado é realizado por mulheres? Desde pequenas somos ensinadas (e cobradas) a cuidar dos outros, e assim deixamos sempre em último lugar outro tipo de cuidado: o com nós mesmas. Qual o impacto dessas responsabilidades em nossa saúde, física e mental? Quem está cuidando dessas mulheres que cuidam da sociedade toda? Aprender a olhar para o nosso corpo em meio a esse turbilhão e entender o autocuidado também como uma ferramenta de saúde são alguns dos caminhos para construir uma relação mais saudável com nós mesmas.

Neste Outubro Rosa, mês de conscientização sobre a prevenção ao câncer de mama, batemos um papo com a médica oncologista Abna Vieira, fundadora do Comitê de Diversidade da Sociedade Brasileira de Oncologia e membro do Grupo de Pesquisa em Saúde da População Negra da USP, Regina Liberato, psico-oncologista e coordenadora do Comitê de Saúde Emocional do Instituto Oncoguia e Comitê de Espiritualidade da Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia, e Elisá Moreira, que se recuperou de um câncer de mama e é fundadora do grupo de apoio Regeneração, sobre autoconhecimento, sobrecarga, rede de apoio e as disparidades que envolvem o diagnóstico e o tratamento da doença.

Você pode assistir à conversa na íntegra no site ou conferir alguns trechos do papo abaixo:

“Dados mostram que, nos meses seguintes ao Outubro Rosa, aumenta a procura das mulheres aos serviços de saúde e exames como mamografias e ultrassons. Mas não pode ficar só nisso. É o mês em que a gente se lembra que câncer de mama é uma doença prevenível, evitável, mas também um chamamento para a sociedade”, diz a médica Abna Vieira. Discutir a prevenção da doença passa, necessariamente, pela maneira como as mulheres cuidam de sua saúde – e por que nos deixamos de lado enquanto estamos tão ocupadas cuidando dos outros. “Precisamos poder nos amar, nos ouvir, nos enxergar. Prevenção é um dos instrumentos de saúde que deve começar no autocuidado", diz a psico-oncologista Regina Liberato. "É transformador conseguir cuidar de si. Mas para isso precisamos experimentar um amor por nós mesmas – e às vezes é mais fácil cultivar o amor pelo outro do que o amor-próprio”.

Diagnosticada com câncer de mama no ano passado, Elisá Moreira sentiu na pele essa transformação. "Depois da pandemia, eu me deixei muito de lado, só trabalhava. Mesmo durante o tratamento, eu hoje vejo que não me permiti ser cuidada, não quis parar em nenhum momento. Sou mãe solteira, a responsabilidade é 100% minha. Então acorda o filho, leva pra escola, trabalha, vai para a quimioterapia… É tanta cobrança do dia a dia que eu não permiti ter aquele momento de pausa", conta. "Um ano depois do diagnóstico, eu me valorizo muito mais. E me preocupo com o autocuidado como não fazia antes. À noite, tomo um banho relaxante, passo hidratante, porque a quimioterapia ressecou minha pele. É o meu momento, para relaxar, cuidar de mim. É preciso, porque senão a loucura do dia a dia consome a gente”.

Conseguir dar conta de todas as demandas cotidianas é um desafio e tanto, mas ele é ainda maior para as mulheres. “A maioria dos chefes de família é mulher. Se os dados apontam que o câncer de mama vai ser o mais incidente entre 2023 e 2025, essa conta não fecha. Porque são as mulheres que cuidam, proveem, fazem o trabalho doméstico… Quem vai cuidar delas quando ficarem doentes? Essa é uma discussão de todos”, afirma Abna Vieira. A médica oncologista conta que a cobrança é tanta que, mesmo durante o trabalho de quimio ou radioterapia, muitas mulheres se sentem culpadas por não conseguiram deixar ou buscar o filho na escola: "Existe a ideia de que a mulher tem a vocação de curar, de cuidar. Mas isso é culturalmente ensinado. Então todos podem aprender isso, inclusive os homens”. Para a psico-oncologista Regina Liberato, que há décadas atende pacientes com câncer de mama e também enfrentou a doença em 2006, é comum ouvir homens dizerem no consultório que "ajudaram" suas companheiras, como se todas as tarefas foram responsabilidade delas e eles estivessem fazendo um favor. “Eu ainda vejo mulheres enfrentando tratamentos de saúde sobrecarregadas de tarefas – não só por imposição do outro, mas às vezes assumidas por elas sem questionamento. Não podemos deixar a sociedade propagar essa ideia de que somos responsáveis por tudo”.

A disparidade não para por aí. Segundo Abna, um indicador da Organização Mundial da Saúde, a autoavaliação em saúde, que mede a percepção da própria saúde, é pior entre as mulheres e entre a população negra. "Quem nunca teve uma dor e foi deixando? Nas costas, na cabeça… Você se acostuma com aquilo porque tem a casa pra cuidar, filho pra levar na creche, o trabalho”, diz a médica. “Mesmo quando elas têm sintoma, notam um nódulo ou têm alguma dor, mulheres, especialmente as mulheres negras, têm suas queixas menos valorizadas no sistema de saúde”. A falta de representatividade entre as pacientes que vemos nas campanhas, na mídia ou nos consultórios médicos faz com que as mulheres negras se sintam ainda mais sozinhas na hora de enfrentar o câncer de mama. “Negros, pretos e pardos são maioria no Brasil, mas não estamos nos lugares de fala. É muito importante termos pacientes negras em quem as meninas possam se espelhar, trocar, ouvir: ‘olha, no tratamento não use aquela touca porque não serve para o nosso cabelo, você vai sofrer à toa’”, diz Abna.

A rede de apoio foi algo que transformou a jornada de Elisá Moreira. Fundadora do grupo de apoio Regeneração, ela resolveu ser a representatividade que não encontrou neste caminho. "A gente tem que falar cada vez mais sobre o câncer de mama, se posicionar e ter um espaço de fala. É muito importante nos ouvirem. Precisamos levar informação", diz. "Eu montei um grupo de apoio com pacientes oncológicos e ali eu podia compartilhar as dores do tratamento, coisas que não queria dividir com a minha família. Tem dias em que nós estamos bem, tem dias em que não. E tudo bem. Mas, cada uma dando a mão pra outra, o processo acaba sendo um pouco mais leve". 

Além do acolhimento, compartilhar esse espaço com outras mulheres é também uma maneira de contar o que ela aprendeu em sua jornada. “O meu recado é: se cuidem, se amem em primeiro lugar", afirma Elisá. "Sejam suas prioridades, a maior de todas, porque, cuidando de si, você vai conseguir muita coisa boa e também cuidar de outras pessoas. Tenham sempre vocês em primeiro lugar”.

Reportagem publicada na Revista TPM em 19/10/2023

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