Tempo é cura para o câncer

A espera deitada aguardando para realizar um ultrassom das mamas ou em pé diante do mamógrafo pode gerar um misto de sensações, ainda mais para mulheres de mais de 35 anos. A paz interior do autocuidado versus a angústia pela possibilidade de descobrir um câncer. Esses minutos dedicados ao exame, que ali parecem longos e incômodos demais, no entanto, podem ser determinantes para que, nos casos de diagnóstico positivo, haja tempo de cura.

Todos os anos, milhares de mulheres se deparam com o diagnóstico de câncer de mama no Brasil. A projeção do Instituto Nacional do Câncer (INCA) é de 73.610 novos casos por ano entre 2023 e 2025.

É a maior causa de morte por câncer entre as brasileiras: em 2020, levou quase 18 mil mulheres a óbito, segundo o INCA. Em termos mundiais, é o mais comum e o com maior número de mortes, ao lado do de pulmão, e o que mais incide sobre as mulheres - em homens os casos são mais raros. Estima-se que uma a cada oito mulheres terá câncer de mama.

Por outro lado, é também um dos tipos de neoplasia com maior chance de cura: quando descoberto e tratado precocemente, chega a 95% para as pacientes que recebem o tratamento adequado."Não há melhor tecnologia para a cura do que diagnosticar a doença e iniciar os cuidados adequados no estágio inicial", afirma a médica, pesquisadora e presidente - eleita da Sociedade Brasileira de Oncologia (SBOC), Angélica Nogueira Rodrigues.

Tempo é cura

O tempo é crucial para a cura e para que a paciente tenha chances de receber tratamentos adequados e que estejam associados à qualidade de vida durante e depois da doença. "A partir de uma mamografia alterada, tudo deveria ser muito ágil, porque essa é a receita de bolo para falarmos em cura", afirma Luciana Holtz, fundadora e presidente da ONG Oncoguia.

Entretanto, essa é uma realidade cada vez mais díspar entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e a rede privada, agravada pelo fato de que 75% da população depende do SUS e muitos desses usuários gastam do próprio bolso para realizar exames e tratamentos que a rede pública demora a oferecer.

"Ninguém tem nada a ganhar com atraso de tratamento. A paciente segue sendo responsabilidade do governo, então ele vai tratá-la. Tratar uma doença mais avançada significa mais custo de tratamento. Doença maior é uma cirurgia mais agressiva, um tratamento medicamentoso mais complexo muitas vezes, uma paciente que passa a precisar de quimioterapia, além de aumentar a mortalidade." Angélica Nogueira Rodrigues, presidente-eleita da SBOC

Leis e políticas públicas

No ano passado, foi sancionada uma nova lei (14.758), de combate ao câncer, alterando parâmetros da anterior, de 1990. Ela define a política nacional de prevenção e controle da doença pelo SUS e o Programa de Navegação da Pessoa com Diagnóstico de Câncer.

A legislação prevê que cada nova paciente diagnosticada seja acompanhada por um profissional especializado, o "navegador", que vai orientá-la naquilo que for necessário, ajudando a superar barreiras sociais, culturais e emocionais a partir de informações que possam garantir, por exemplo, que ela não deixará de ir ao médico ou fazer um exame na data correta.

Para o professor da faculdade de ciências médicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e ex-secretário do Ministério da Saúde, Denizar Vianna, o programa de Navegação é uma tecnologia simples e necessária: "a gente pensa em high tech (alta tecnologia), mas a navegação é uma tecnologia que faz muita diferença, porque permite otimizar, ganhar tempo, identificar onde estão os gargalos, é fundamental".

Outra ação com potencial para tornar o acesso ao atendimento público mais efetivo é o recente Programa de Mais Acesso a Especialistas - PMAE, cujo objetivo é tirar pacientes da fila de atendimento, encaminhando-os para equipes de saúde integradas.

Sobre esperar, não é de hoje que a legislação prevê um atendimento mais ágil. Desde 2019, a Lei dos 30 dias (13.896) determina que, em casos de suspeita de câncer, todos têm o direito à realização de um exame diagnóstico em até 30 dias no serviço público.

Ainda mais antiga, a Lei dos 60 dias (12.732) estabelece que, em casos de diagnóstico positivo para a maior parte dos tipos de câncer, o paciente do SUS deve iniciar o tratamento em até 60 dias - prazo que, em muitas situações, já é considerado elevado. E a realidade nem sempre segue o previsto.

"Não adianta comemorar a implementação de um programa, tem que comemorar quando ele funciona. Está faltando uma capacidade de execução maior para que aconteça na prática o que é perfeito no papel." Nelson Teich, médico oncologista e ex-ministro da Saúde

Prática distante

Léia Silva, palestrante, descobriu o primeiro câncer de mama - do tipo invasivo grau 3 - em 2016, quando tinha apenas 28 anos. Ou melhor: aos 25, porque entre a identificação de um nódulo por meio do autoexame e o aguardado diagnóstico final, passaram-se quase quatro anos. Período que custou caro, entre tantos motivos, pela chance de ser tratada sem perder a mama - Léia fez duas mastectomias.

As primeiras barreiras foram a longa espera para ser atendida e ter um ultrassom em mãos. Depois, a qualidade do atendimento médico. Três profissionais disseram a ela que, por ser muito jovem, era improvável que o nódulo, cada vez maior e já visível, fosse câncer.

Receber o diagnóstico acabou sendo um alívio. "Eu lembro que peguei o exame, sentei e abri, porque já sabia o que estava escrito. Ao invés de chorar, fiquei aliviada. Eu já tinha chorado tudo que tinha de chorar. O medo que eu tinha de sentir, já tinha sentido. Ali eu senti alívio, eu ia me cuidar e me curar", conta.

A cura veio, mas o processo poderia ter sido muito menos sofrido e Léia teve a certeza disso quando teve um novo câncer, na outra mama, esse chamado de carcinoma in situ ou não invasivo. Desta vez, o diagnóstico veio muito mais rápido, pela rede privada. Recebeu um tratamento menos agressivo e, em 30 dias, foi submetida à cirurgia para retirada do tumor. Sofrimento incomparavelmente menor a ela e à família.

"Eu não quero que outras mulheres sintam o que eu sinto há 8 anos, de olhar no espelho e me sentir mutilada. Isso mexe muito com a mulher. Não é só peito, só cabelo, é uma vida que está ali." Léia Silva, palestrante


Acesso e financiamento

Dados coletados pela Oncoguia/Radar do Câncer apontam que 54,5% começam o seu primeiro tratamento no SUS com a doença nos estágios avançados III e IV. Além disso, é já no início da jornada que surgem os desafios e desigualdades entre quem depende do setor público e do privado.

Para além de os gastos per capita com o tratamento do câncer no SUS serem menores do que no Sistema Suplementar, o professor Denizar Vianna aponta ainda um agravante, o do determinante social, que são fatores econômicos, sociais e culturais que influenciam a condição prévia de saúde da população, como hábitos alimentares

Renda, região onde mora e maternidade, entre outros aspectos, também interferem diretamente no acesso a um tratamento adequado e humanizado e até em como a paciente curada vai seguir pelo resto da vida.

Estudo brasileiro recente descobriu que são as mulheres negras que recebem os diagnósticos em estágios mais avançados da doença - 60,1%, frente a 50,6% para mulheres brancas - e que a taxa de mortalidade pelo câncer de mama é quatro vezes maior para as mulheres negras.

Essas condições prévias comprometem o acesso a médicos especialistas ainda mais. "Há vários desafios na jornada da paciente para diagnosticar câncer de mama no SUS. Um dos vários gargalos é o acesso a um mastologista, à biópsia de mama e ao diagnóstico do câncer", explica a médica e presidente-eleita da SBOC, Angélica Nogueira Rodrigues.

Outro grande gargalo, segundo ela, é a classificação do tumor - só de mama há três tipos, por exemplo - a partir de um exame chamado imunohistoquímica (IHQ), muito demorado na rede pública e que faz diferença na adequação do tratamento. Ela ainda acrescenta a necessidade de "celeridade para acesso a cirurgias e a medicamentos fundamentais".

"Existe o além da doença que também precisa ser levado em consideração, pois pode interferir até mesmo nos desfechos do tratamento. Onde a paciente mora, o que ela come, se está trabalhando, tudo isso importa na hora da escolha de como ela será cuidada." Luciana Holtz, presidente da Oncoguia

Gestão e recursos

Eliminar as desigualdades sociais e democratizar o acesso à saúde demanda investimentos."Os hospitais que estão demorando para conseguir fazer uma cirurgia ou quimioterapia não estão brincando de demorar, estão sobrecarregados, é uma questão de alocação de recursos, mas também de ampliação", defende Luciana Holtz.

O oncologista e ex-ministro da saúde Nelson Teich é enfático ao dizer que há um problema duplo: "claramente precisamos de uma gestão melhor e há falta de verba. E quanto menos dinheiro você tem, mais eficiente você tem de ser".

O diagnóstico precoce só é efetivo para ampliar as chances de cura e melhor controle do câncer de mama quando, após recebê-lo, a paciente tem acesso aos cuidados adequados. Contudo, mesmo medicamentos oncológicos com a incorporação formalizada no SUS há mais de três anos ainda não estão disponíveis para as pacientes devido a limitações orçamentárias.

"O governo precisa organizar fluxos de negociação para a nossa paciente ter acesso ao que ela precisa", comenta Nogueira.

Denizar Vianna defende, por exemplo, a centralização da compra de medicamentos pelo Ministério da Saúde e reforça a necessidade de aumentar a captação de verba:"as demandas só aumentam, a população envelhece, os remédios ficam mais caros. Temos de trazer novas fontes de recursos, discutir taxação de alimentos ultraprocessados e condicionar um tributo que seja revertido ao SUS, por exemplo".

Outra possibilidade para ele é a Parceria Público-Privada (PPP). "É uma área onde a complementaridade do SUS com o setor privado vai fazer muita diferença. Porque ele não terá estrutura para fazer isso, mas pode contratar a do setor privado que, às vezes, tem ociosidade", explica Vianna.

"Nós lidamos com escassez de recursos para poder oferecer, no SUS, os tratamentos que realmente fazem a diferença." Denizar Vianna, professor da UERJ e ex-secretário do Ministério da Saúde

Próximos passos

Cada um dos três tipos de câncer de mama tem um tratamento distinto e a grande maioria das pacientes não sabe disso."Uma paciente informada e que conhece seu corpo, sua doença e seus direitos têm muito mais chances de ampliar o diálogo com seu médico e de participar mais das decisões do seu tratamento", diz Luciana Holtz. "Temos que incentivar esse autoconhecimento e o acesso à informação desde a atenção primária", completa.

É nos primeiros contatos com a equipe do posto e/ou hospital que a paciente encontra ou não a possibilidade de uma jornada mais humanizada e adequada. De acordo com a médica Angélica Nogueira, a SBOC acompanha as residências dos médicos em formação e promove educação continuada com foco em rastreio, diagnóstico e tratamento.

Mapear demanda, infraestrutura, financiamento também é imprescindível, de acordo com o oncologista Nelson Teich. Mais: os governos devem ainda entender melhor como está o acesso ao serviço de saúde, o desenrolar do tratamento e o desfecho clínico das pacientes. Tudo isso pode ser feito com investimento em equipes especializadas e análise de dados públicos.

"A oncologia tem de ser uma prioridade. O governo tem de olhar para as necessidades da população em termos de saúde, levando em conta os determinantes sociais. A partir dessa demanda de cuidado, você tem de ver se sua estrutura é compatível com ela ou não", comenta o ex-ministro da Saúde.

O mapeamento e a análise de informações ocupam papel central porque é através deles que se torna possível determinar quais são as políticas públicas mais necessárias na área da saúde e quais delas estão realmente sendo efetivas. Um exemplo é o próprio Programa de Navegação, uma tecnologia importantíssima, mas que para funcionar exige melhor infraestrutura. "Você não consegue navegar, afinal, em um mar que não é navegável", conclui Teich.

Cabe à gestão pública garantir que o "mar navegável", ou seja, a infraestrutura do país na área da saúde, seja capaz de agregar as novas tecnologias que surgem de forma mais igualitária."Quando você tem uma infraestrutura baixa, baixo poder econômico, você tem pouca chance de aproveitar a inovação. Porque, para ela, você precisa de recursos humanos cada vez mais qualificados, por exemplo, e isso aumenta o custo, causando maior desigualdade se a gestão não for eficiente. A inovação traz a chance de cuidar melhor. Quem traz acesso, justiça a equidade é o gestor público", defende Teich.

Outra ação que pode melhorar as perspectivas em relação à cura do câncer de mama é a regionalização do atendimento. Regionalizar significa olhar com mais cuidado para cada local, aplicando políticas adequadas às diferentes realidades nacionais. E as macrorregiões de referência devem garantir atendimento completo, incluindo de alta complexidade.

A palestrante e ex-paciente Léia Silva lembra que pequenas ações podem fazer muita diferença. "Por que não há atendimento aos sábados? Por que não um atestado, ao invés da declaração de horas? Porque a mulher não quer ficar com falta no serviço. São pequenas coisas".

O câncer já é e será cada vez mais uma realidade na história de todos nós. Criar a cultura do autocuidado, quebrar tabus, estigmas e nos informar são atitudes que podemos ter desde muito cedo. Uma atenção que, claro, deve vir acompanhada da chance de um exame, diagnóstico e/ou tratamento no momento certo. O tempo não para, não espera, mas deixa claro: quando nos antecipamos, ele é cura.

Fonte: UOL

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