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Anna Paula - Câncer de Pâncreas
Do diagnóstico ao óbito.
Em fevereiro de 2020, meu pai começou a se queixar de uma dor em queimação na 'boca do estômago', que era do tipo queimação e piorava quando ele estava estressado (ele estava passando por um processo de separação).
Eu estou no final da graduação de medicina, e, tenho gastrite... Suspeitei que fosse algo do tipo e com muita insistência convenci ele a marcar horário no gastro e liguei agendando uma endoscopia.
O resultado confirmou uma pangastrite intensa. A princípio fiquei aliviada porque agora ele ia se medicar de forma adequada e aliviaria essa tão incomoda queimação. Porém, 7 dias após o inicio do tratamento as coisas começaram a sair do controle. Emagrecimento repentino (sinal de alerta para neoplasias!!), dor persistente mesmo em uso da medicação e um extremo descontentamento com a situação que ele estava. Quando ele me falou que as coisas evoluíram dessa forma, liguei para a minha mãe (que não morava mais com ele) e falei que eles tinham que voltar no médico e agendar um exame de imagem com urgência, que não era normal o que estava acontecendo.
Confesso que durante esse tempo, não imaginei que meu pai estava com algo tão grave. Ele era novo (49 anos), nunca fumou, não bebia nada com álcool e nem refrigerante há mais de 10 anos, não possuía nenhuma doença crônica e não havia história de câncer de pâncreas na família.
Conseguiram agendar um exame 3 dias depois, e acordo com uma mensagem da minha mãe dizendo que eles ‘fizeram um ultrassom de abdome e encontraram uma massa no pâncreas’.
No momento em que li isso meu mundo desmoronou. Eu já havia estudado sobre CA de pâncreas e sabia que era um dos piores, porque eram silenciosos e quando davam alterações, significava que a doença já estava em estágio avançado.
Eu sabia que era muito difícil visualizar o pâncreas nesse exame, e que se foi possível ver uma massa era porque a doença já estava disseminada. Uma enchente de informações inundou meu cérebro: ‘não tem cura’, ‘péssimo prognóstico’, ‘os pacientes morrem consumidos pela doença’, ‘metástase’ ‘fator de risco familiar’. Ali, naquela hora, eu sabia que meu pai estava morrendo.
Ele não estava ictérico (amarelo), sua urina e suas fezes estavam da coloração normal e com isso já dava para saber que o tumor estava no corpo/cauda do pâncreas, ou seja, o diagnóstico era mais tardio ainda... O radiologista solicitou que meu pai entrasse em contato com o médico dele e agendasse uma ressonância magnética para investigação.
A primeira coisa que fiz foi voltar para casa. Eu precisava estar do lado dele na hora que o diagnóstico fosse dado, porque eu sabia o que estava por vir e não havia, de fato, qualquer chance de o exame dar outro resultado. Por mais que eu quisesse que fosse diferente, que fosse qualquer outra coisa, eu sabia o que era e sabia que era avassalador.
A gente acha que está preparado para ver as coisas desmoronarem, mas não estamos. Em 2 semanas eu vi toda a minha vida se desmanchar.
Na ressonância foram detectadas múltiplas metástases no fígado, pulmão e linfonodos. Ainda sim, como protocolo, fizeram uma biopsia para selar o diagnóstico.
Esse é um tipo de câncer que consome a pessoa em poucos meses, que causa uma dor e sofrimento muito intensa no paciente. Meu coração doía demais ao saber tudo que meu pai iria enfrentar. Como a doença já estava avançada, a cirurgia (que é a única chance de cura) estava descartada. Restava apenas tratamento paliativo.
Ele começou a quimioterapia e tomava medicações fortes para o tratamento para dor. E durante o processo, somam-se os medicamentos... um remédio para dormir, um para depressão, um para ir ao banheiro, uns para dor...
O acompanhamento nutricional foi essencial para ele conseguir ir ao banheiro (visto que as medicações causavam muita constipação) e não perder tanto peso de forma tão rápida.
Até novembro, as coisas fluíram relativamente bem, dado o prognóstico. Ele se sentia muito fraco por causa da quimio e não sentia fome nenhuma, mas as dores estavam controladas.
Houve algumas vezes que ele necessitou ir ao pronto atendimento para tomar soro, fazer transfusões de hemácias, plaquetas e algumas vezes fazer lavagem intestinal, mas o organismo dele estava aguentando bravamente.
Minha mãe me ensinou muito sobre dedicação e cuidou dele com muito zelo e amor. Ela preparava as refeições dele e insistia para ele comer, lembrava ele dos horários dos remédios, estimulava ele a manter contato com os amigos da igreja... Enfim, ela se dedicou de corpo e alma durante todos esses meses e foi essencial para que ele não se entregasse para a dor.
Durante todo esse tempo, ele tomou banho sozinho, comeu sozinho e tomava os remédios sozinho. Saiu algumas vezes com os amigos da igreja e chegou até a fazer uma viagem dirigindo sozinho.
Mas sim, a pessoa que sente dor o dia todo e fica impedida de trabalhar, de ter sua rotina, de descer uma escada sem sentir falta de ar, ela vai ficar chata. Ela vai reclamar, ela vai ser rabugenta em alguns momentos. Estejam preparados para lidar com isso, qualquer pessoa com um tumor consumindo toda sua força e sua vida, ficaria irritado.
No final de novembro, as dores começaram a ficar insuportáveis e ele já não tinha força para muita coisa. Sua urina começou a ficar escura e suas fezes branca (o tumor estava aumentando, fazendo com que a cabeça do pâncreas pressionasse as vias biliares) e ele evoluiu com uma obstrução no intestino delgado.
Ele não conseguia ir ao banheiro, estava com a barriga muito inchada e vomitou fezes.
Foi internado e solicitada uma avaliação da cirurgia, porque se a obstrução continuasse, ele iria evoluir com sepse e iria a óbito.
Felizmente, conseguiram desobstruir sem a necessidade da cirurgia, afinal, o organismo dele estava muito debilitado para passar por um processo tão invasivo.
Ele foi estabilizado e recebeu alta para casa. A dose da medicação aumentou e ele ficou uma semana estável em casa.
Após 7 dias, as dores intensas voltaram e ele se sentia muito fraco, quase incapaz de se manter em pé.
Fomos novamente ao PS e as plaquetas estavam em 16 mil, a barriga gigante, inchada, dura e todo o resto do corpo estava emagrecido... Ele foi novamente internado, pela última vez.
Foram feitas várias transfusões para tentar reverter as plaquetas tão baixas e a anemia.
Na quinta-feira (03/12) ele estava ótimo, me mandava áudios e fotos, conversava com todo mundo do hospital estava se alimentando. Porem durante a madrugada ele começou a reter muito liquido (os rins já não aguentavam a sobrecarga), ficou muito fraco e esse foi o único dia que minha mãe deu banho dele.
Cheguei ao hospital nessa tarde e ele estava dopado de medicamentos. Muito inchado, todo roxo onde haviam pegado as veias para infusão de medicamentos (e como seu fígado e nem a medula óssea estavam funcionando, seu sistema de coagulação estava em falência).
Ele começou a vomitar por volta da meia noite de sábado.
Sua respiração já estava falhando, pois, os tumores estavam comprimindo os pulmões.
A dor já não era mais suportável.
Eu acompanhei as últimas horas de vida do meu pai. Em seu último suspiro de vida, ele conseguiu reunir forças para me segurar e falar que me amava.
As 08:10 do sábado o médico declarou o óbito.
Ainda não sei como será a vida sem o meu pai, que sempre esteve tão presente na minha vida e fez tudo por mim. Dói muito e sei que vai doer para sempre.
Mas mesmo durante a doença e durante a morte, ele me ensinou lições sobre força e sobre o amor pela vida.
Escrevo na intenção de ajudar familiares e amigos a entenderem o processo da doença e, na medida do possível, se prepararem para enfrentar o que está por vir. Tenho certeza que ele gostaria de ajudar alguém, mesmo nessa situação.
Sejam fortes por quem você ama. Dói demais, é muito difícil. Mas, infelizmente, não há escapatória.
Apesar de a minha família ser muito religiosa, eu não tenho religião. Sabendo que não havia cura, me apoiava no fato de que cada corpo reage de uma forma ao tratamento e as medicações. Torcia para que ele encontrasse profissionais capacitados e humanos durante sua trajetória e que sua dor fosse a mínima possível, dada as circunstancias. Todos nós precisamos encontrar conforto e buscar forças em algum lugar. Seja na medicina, na fé ou em ambos.
Durante o sepultamento, com o cemitério lotado, meu pai foi aplaudido. Ele era muito amado e, em vida, tocou o coração e ajudou muitas pessoas. Tenho orgulho demais do meu velhinho.