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Eduardo Maluf - Câncer de Pâncreas
Da vitalidade à debilidade, o fim de meu pai em 4 meses
Era 12 de janeiro de 2018, um dia chuvoso em Londrina-PR, onde minha família e eu vivemos há alguns anos. Fazia uns 45 dias que meu pai se queixava de falta de apetite, intestino preso e um leve inchaço no abdome. Passou por um gastro, um infectologista e por dois médicos de pronto-atendimento. Submeteu-se a ultrassom, colonoscopia e endoscopia, que nada detectaram. Os médicos lhe disseram que o desconforto deveria ser consequência de gases e lhe receitaram medicamentos como Luftal. Mas de nada adiantou. Depois do Natal e do Ano Novo, ele foi a um clínico geral de nossa cidade, que lhe pediu uma tomografia computadorizada.
O resultado saiu nesse 12 de janeiro que mencionei no início do texto. Eu estava com maus pressentimentos, e não deixei meu pai ir ao laboratório para retirar o laudo. Fotografei o número do protocolo e eu mesmo fui pegar o resultado. Não queriam me dar os exames, porque não era eu o paciente. Mas expliquei que chovia demais, que meu pai estava cansado e prestes a completar 80 anos de idade. Deixei alguns documentos, assinei uns papeis e retirei o laudo. Estava com minha filha, de 3 anos, ao lado. Quando abri o envelope e li o relatório do médico, me senti nocauteado. Como se tivesse levado um soco no queixo de Mike Tyson, o pugilista destruidor que me fez ver muito boxe na minha adolescência.
Sofri o maior golpe de meus 41 anos de vida. Lá, naquela maldita folha, estava escrito: "Inúmeras nodulações de carcinomatose no peritônio". Sou jornalista e trabalhei mais de década num grande jornal de São Paulo, sempre com esporte. Mas me interessava por outras questões, como as ligadas à saúde. Cobri, por exemplo, a morte precoce do zagueiro Serginho, do São Caetano, durante jogo com o São Paulo, no Morumbi...
Assim que vi carcinomatose, pensei: "Essa palavra desgraçada significa câncer". Pus no google do meu celular, ainda lá no laboratório, e a pesquisa, antes mesmo de eu finalizar o texto, já sugeriu um cenário devastador. Ali, na telinha do aparelho, apareceu, de cara: "Carcinomatose peritonial, tempo de vida". O mundo desabou em minha cabeça, muito mais do que a tempestade que tomava Londrina. Entrei no carro com minha filha e a levei para minha mulher. Liguei para um gastro, que me recomendou ir direto a um oncologista. Era fim de tarde de sexta-feira. Quase ninguém mais estava atendendo. Liguei desesperado para a secretária de um oncologista, que me recebeu. Ele disse: "É grave, bem complicado, mas não adianta me fazer muitas perguntas, porque preciso de mais exames para lhe dar um cenário mais real". Fui para casa chorando, sabia que estava perdendo o meu pai.
Entrei no apartamento de meus pais com o exame em mãos. Ele estava saindo do banho, e me perguntou se eu tinha visto o resultado. Disse que sim e completei: "Pai, a notícia não é boa, mas vamos lutar". Minha mãe, meu pai e eu ficamos juntos, por um bom tempo, tentando buscar ânimo para enfrentar esse inimigo que, em pouco tempo, sabíamos que seria invencível.
No dia seguinte, pela manhã, fui ao apartamento de um casal amigo nosso. A moça, que luta contra um câncer há anos, e seu marido me atenderam e deram os caminhos que deveríamos percorrer nessa batalha. No início da semana, levei meu pai a dois oncologistas de Londrina, um cirurgião e outro clínico, e eles pediram que meu pai passasse por um exame de Pet Scan, do qual nunca havia ouvido falar. É um exame que mapeia o corpo todo. O objetivo era encontrar o sítio primário do câncer, porque raramente ele nasce no peritônio, que é uma membrana que recobre fígado, pâncreas, intestino, apêndice...
A única máquina de Pet que existe em Londrina estava em manutenção. Resolvemos, então, ir a São Paulo. Afinal, somos de lá, temos família na capital paulista e já havíamos contatado oncologistas na cidade. Fomos de carro (meus pais e eu), 530 quilômetros, na segunda-feira, 22 de janeiro. Saímos para jantar num restaurante de que sempre gostamos, frequentávamos bastante quando morávamos em São Paulo. Mas não foi agradável como das outras vezes. Meu pai estava quieto, visivelmente cansado e desanimado. Ficamos hospedados num hotel, não queríamos incomodar familiares.
No dia seguinte pela manhã, seguimos para o hospital (um dos muito bons da cidade) para que meu pai se submetesse ao Pet Scan. Durante o exame, uma médica saiu da sala e chamou minha mãe no canto: "Seu marido está com coágulos em uma das pernas e nos pulmões e, por isso, vamos precisar interná-lo". Minha mãe ficou trêmula, atordoada, desesperada. Meu pai foi direto para a UTI do hospital. Eu comecei a perguntar o que estava acontecendo. Até um mês antes meu pai caminhava seis ou sete quilômetros por dia, carregava a neta de 3 anos dentro da piscina e esbanjava disposição, apesar dos quase 80 anos de idade. Agora, além do câncer, tem embolia nos dois pulmões e trombose em uma das pernas. Daí fiquei sabendo que esses coágulos de sangue pelo corpo eram apenas uma das consequências dessa maldita doença.
Meu pai ficou quase duas semanas internado, para se recuperar dos coágulos e para que identificassem de onde saiu o tumor, já que nem o Pet havia sido capaz de decifrar o enigma. Ele precisou passar por uma cirurgia por laparoscopia para que retirassem fragmentos do peritônio a fim de encontrar a origem do câncer. Depois disso, meu pai recebeu alta e os médicos o liberaram para voltar a Londrina, enquanto aguardávamos o resultado.
Passados uns dez dias, o diagnóstico saiu. A carcinomatose no peritônio era metástase do pâncreas. Praticamente uma sentença de morte. Liguei para o oncologista de São Paulo, que me disse o seguinte: "Eduardo, não adiante seu pai voltar para São Paulo. Façam o tratamento aí mesmo, a quimioterapia, caso ele não esteja tão debilitado. Aí ele ficará ao lado da família e não se desgastará com a viagem. Não vale a pena. Esse tumor é muito agressivo. Você não viu o que aconteceu com o jornalista Marcelo Rezende no ano passado? Morreu em 4 meses por causa do pâncreas...".
Em nenhum momento relatei essa conversa a meu pai. Queria mantê-lo animado, esperançoso. Ele estava ansioso para o início da quimioterapia. Mas já começava a enfraquecer e a emagrecer. A barriga inchava cada vez mais. Tinha muita dificuldade para se alimentar. Comia por obrigação, sem fome nenhuma. Um dos médicos me explicou que, além do líquido que se acumula na região por causa da inflamação e reduz o apetite, o tumor ainda produz enzimas que provocam saciedade. Terrível!
Até que, em 26 e 27 de fevereiro, meu pai passou pelas primeiras sessões de quimioterapia. No dia 27, uma terça-feira, ele voltou confiante para casa. À noite, assistimos juntos a um jogo da Copa Libertadores e, depois, antes de dormir, meu pai caminhou pela casa para "fazer digestão" antes de dormir, hábito seu desde sempre. Eu fui para meu apartamento animado também, acreditando, quem sabe, num milagre.
Mas, no dia seguinte, a euforia deu lugar à depressão. Pela manhã, minha mãe ligou para dizer que meu pai havia passado muito mal durante a madrugada, vomitara bastante e não conseguira dormir. A semana foi devastadora. Na noite de quinta-feira, dia 1.º, liguei para meus tios, irmãos de meus pais (os três que são vivos), que moram no interior de São Paulo. Conversei, primeiro, com o irmão que é monsenhor em Piracicaba. Pedi-lhes que viessem a Londrina para ver meu pai. Daí monsenhor Jorge indagou: "Mas, se formos assim de repente, ele não pode achar estranho, pensar que está morrendo?". Eu respondi que não, porque justamente no sábado, dois dias depois, 3 de março, era o aniversário de 80 anos de meu pai. Os três vieram, e fizemos uma linda festa para meu pai, com minha mãe, minha filha, minha mulher, minha irmã, meu cunhado e minhas duas sobrinhas.
Dois dias depois, na segunda-feira, 5 de março, levei meu pai ao hospital, de tão fraco que estava. Ele ficou internado uma semana. Quando voltou para casa, contratamos cuidadores. Por mais que minha irmã e eu passássemos bastante tempo com nossos pais (quase o dia todo), precisávamos de cuidados 24 horas. Até para dar tranquilidade à minha mãe. Meu pai nunca perdeu a lucidez, algo positivo, porque ele continuava conversando conosco, vendo futebol, lendo jornal... Mas havia um aspecto negativo nisso. Ele percebia claramente sua deterioração física, e sofria com isso.
Os amigos me falavam: "Aproveite seu pai o máximo que puder". E eu lhes respondia que não tinha arrependimento, porque aproveitei meu pai desde que nasci. E nunca deixei de estar a seu lado, mesmo quando comecei a namorar, trabalhar ou depois de ter me casado. Apenas faria o que sempre fiz. Desde criança frequentei estádios de futebol com ele, fizemos muitas viagens juntos, conhecemos dezenas de restaurantes em São Paulo, Londrina, etc, conversamos sobre todos os assuntos. Essa relação de amor estava no fim. Mas tanto ele quanto eu sabíamos que tinha valido muito a pena. Nada ficou para trás.
Meu pai foi ficando cada vez mais fraco e mais magro. Mas não sentia dores, um consolo para nós todos. Compramos uma cama de hospital para pôr em casa, na expectativa de que ajudasse no sono e reduzisse os refluxos. Deu resultado e minimizou os problemas. Fui atrás da polêmica fosfoetanolamina, que consegui adquirir por meio de um importador. Compramos vitaminas, enfim, tentamos de tudo. Entre março e abril, ele foi internado duas vezes por pneumonia. Recuperou-se.
Em 29 de abril, um domingo, ele amanheceu fraco demais e, pela primeira vez, não conseguia nem firmar os pés no chão. Precisava praticamente ser carregado. Achamos melhor levá-lo novamente ao hospital. No dia 2, quarta-feira, vimos juntos, no quarto do hospital, o jogo entre Roma e Liverpool, pela Liga dos Campeões da Europa. Ele comentou a partida com extrema lucidez. Em seguida, perguntou-me se eu poderia tirá-lo da cama e colocá-lo na cadeira. Sentado, pegou o celular. E me pediu que o ajudasse a enviar algumas mensagens por whatsapp. Mandou a quatro ou cinco amigos de São Paulo o mesmo texto: "Querido fulano, sinto que meu fim chegou. Mas vou feliz, porque deixo minha família tranquila. Obrigado por tudo!".
Horas depois, no início da madrugada seguinte, sua respiração, que até aquele momento estava ótima, começou a falhar. Ele passou a ficar ofegante e, pela primeira vez, precisou usar aparelho para respirar. Na tarde daquela quinta-feira, 3 de maio, seu coração parou.
Perdi um pai fantástico, meu melhor amigo.
Foram os quatro meses mais sofridos e difíceis de minha vida. Aprendi muita coisa que gostaria de compartilhar. Percebi durante essa tempestade que há muito pouco material para auxiliar no convívio e na relação com um parente ou amigo com câncer em estágio avançado. O que fazer? Como lidar? Como tratar o assunto? Levar o paciente para passear ou deixá-lo em casa?
Aprendi, por exemplo, que muitos oncologistas são frios, gelados, lidam com o câncer como nós lidamos com uma unha encravada. Que é necessário ter, além do oncologista, um médico que cuide dos efeitos colaterais da doença e de seu tratamento. Que o acompanhamento psicológico é importantíssimo...
Cheguei à conclusão de que a vida é incrivelmente frágil. De um senhor forte e ativo, meu pai se tornou uma pessoa debilitada em poucos meses, até a morte. Percebi que a medicina ainda sofre goleada do câncer, infelizmente. O tumor de pâncreas, por exemplo, é um dos que desafiam ferozmente a ciência. Seu diagnóstico é praticamente um atestado de morte. Não há o que fazer, e sim lutar para amenizar o sofrimento.
Enfim, se criar coragem para escrever um livro, dividirei as muitas experiências que vivi nesse pouco tempo - apenas quatro meses, repito. De conforto, fica a certeza de que meu pai foi em paz, tranquilo, sem grande sofrimento. E a convicção de que aproveitei cada minuto a seu lado nestes meus 41 anos.